Crítica | Raquel 1:1 – Espiritualidade feminina em suspense divino

A religião sempre teve um papel importante na vida das pessoas, fornecendo orientação espiritual e moral. No entanto, em muitos casos, a religião também pode ser usada como uma ferramenta de opressão contra grupos marginalizados, incluindo as mulheres. No Brasil, a opressão religiosa é uma realidade preocupante que afeta mulheres de diferentes crenças e culturas. Além de enfrentar restrições em suas liberdades pessoais e sociais, elas também são vítimas de violência e abuso e são subjugadas a papéis tradicionais de gênero dentro de suas comunidades religiosas. Dito isso, é importante salientar a magnitude de Raquel 1:1 para esse novo cinema nacional, que põe pra fora todas as inquietudes de um Brasil pós-bolsonarismo e a ascensão da extrema-direita religiosa.

De fato, uma temática recorrente atualmente – explorada também em outros bons filmes como Medusa – a opressão religiosa dentro da juventude brasileira serve de palco para o desenrolar da trama impactante e carregada de suspense da cineasta Mariana Bastos (Alguma Coisa Assim), que nos presenteia com mais uma fantástica obra para esse novíssimo cinema de horror nacional que está em ascendência.

Mas é claro que os males que assombram o Brasil não são fantasmagóricos ou fantasiosos, muito pelo contrário, são, na realidade, palpáveis e retratam a maldade humana quando possui um certo nível de poder em mãos. O que Bastos genialmente faz em seu primeiro trabalho solo na direção é ousado e corajoso: ela utiliza o horror e seu ponto de vista sensível e aguçado para questionar e subverter o papel de mulher na Bíblia, destacando pontualmente que tal livro histórico foi escrito apenas por homens.

A trama e o elenco

Em Raquel 1:1, que chega aos cinemas pela O2 PLay após fazer sucesso em festivais internacionais, a jovem Raquel retorna com seu rígido pai para uma pequena cidade do interior após a perda de sua mãe. No entanto, o que parecia um recomeço se torna, na verdade, um acerto de contas da menina com seu passado traumático e com a divindade que a persegue, uma vez que presencia acontecimentos misteriosos e embarca numa controversa missão ligada à Bíblia e ao papel da mulher na sociedade. Taxada de bruxa ou possuída pelas forças do mal, Raquel recebe a incumbência de reescrever a história misógina do livro sagrado, apenas por ter tido a audácia de questionar.

Uma das coisas que tornam o filme tão poderoso é sua abordagem realista e autêntica da vida contida de Raquel, a personagem principal. O filme é capaz de capturar a complexidade das emoções e das tensões presentes na vivência de jovem, assim como a da comunidade religiosa que a cerca. A atuação de Valentina Herszage (Mate-Me Por Favor) é excepcional, sombria, expressiva e traz um ar de mistério que agrega muita sutileza e veracidade, semelhante ao que vemos em filmes como Saint Maud, da A24. Seu passado é narrado através de áudios e, aos poucos, somos sugados para a complexidade que habita dentro da menina e seu dom “profético” de ressignificar o que toca.

Além disso, o filme contorna seu baixo orçamento e é muito bem construído do ponto de vista técnico, com uma direção de fotografia primorosa que destaca as paisagens claustrofóbicas do interior, onde a história se passa. A trilha sonora também é um ponto alto, e ajuda a criar uma atmosfera emocionalmente carregada e envolvente do começo ao fim, especialmente nos enigmáticos momentos de suspense, extraídos da conexão da protagonista com a natureza ameaçadora que a cerca. A condução de Mariana preserva os mistérios e as estranhezas da trama sem dar respostas claras. Peca levemente no ritmo, mas brilha na construção da expectativa provocada no público.

Dentro desse contexto asfixiante e oculto em que a personagem habita, o filme reflete religiosamente sobre a exclusão da mulher dos textos bíblicos e como muitos aspectos importantes da experiência feminina podem ter sido negligenciados ou ignorados, e a perspectiva feminina pode ter sido sub-representada ou distorcida na Bíblia. Além disso, examina com maestria a lavagem cerebral presente em alguns cultos religiosos e como essa manipulação da experiência humana em relação ao divino pode ser tóxica, hipócrita e ameaçadora.

Veredito

Com sua atmosfera sombria e profunda, Raquel 1:1 representa mais uma obra divina sobre expressar tudo que estava entalado no cinema nacional durante o período da ascensão da extrema-direita religiosa ao poder. Um suspense que consegue ser emocionante e impactante, ao mesmo tempo em que oferece uma crítica social importante sobre a vida das mulheres em comunidades religiosas no Brasil.

Como protagonista, Valentina Herszage segue sendo celestial em sua performance expressiva e soturna, abraçada por uma trama ousada e instigante. Um trabalho cinematográfico que merece ser visto e celebrado pela forma sensível e empática com que aborda temas tão delicados. Raquel 1:1 ilumina o assunto sem cometer o pecado de extrapolar.

NOTA: 8/10

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