O cinema, uma vez ou outra, funciona como um espelho sombrio da realidade em que vivemos, antecipando as possíveis calamidades do futuro e nos fazendo questionar nossas escolhas mais complexas. Muito antes de qualquer ALEXA em nossas casas, Kubrick já estava nos alertando para o descontrole de inteligências artificiais no clássico 2001 – Uma Odisseia no Espaço, através da presença do imbatível HAL. E M3GAN – novo terror da Blumhouse – é apenas mais um reflexo moderno dessa autonomia que damos ao inanimado.
Depois de ver demônios incorporados em brinquedos assassinos, o subgênero que fez de Chucky um sucesso e Annabelle um fenômeno, dá um passo à diante e explora a sinistra zona do medo da tecnologia e seu impacto na sociedade, isso com toda a liberdade criativa e galhofada que um filme de terror pode proporcionar. Sem dúvida, M3GAN ultrapassa a linha estabelecida e se mostra uma divertida reinvenção, tanto ao estilo quanto ao quão inventivo esse tipo de obra pode ser. É fácil entender o hype todo em cima, mas a narrativa desajeitada do drama familiar – que substitui os sustos clichês de sempre – proporciona uma história bem humorada, mas digna de vergonha alheia que não passa despercebida.
A trama e o elenco
De fato, M3GAN é o pontapé inicial para mais uma franquia lucrativa da Blumhouse e isso é perceptível durante toda a sua trama “de origem”. Por vezes, o longa foca mais em construir um pequeno universo do que entregar uma começo promissor. Na trama, Allison Williams (de Corra!) vive Gemma, a perfeccionista viciada em trabalho da empresa de brinquedos Funki, especializada em robôs inteligentes para as crianças, cujo mais recente projeto de estimação é suspenso quando ocorre um desastre. Gemma se torna a guardiã de sua sobrinha Cady (Violet McGraw) depois que um acidente deixa Cady órfã.
O roteiro previsível explora o trauma adolescente após a morte dos pais, quando Gemma decide recrutar Cady como testadora de sua mais nova invenção. Gemma apresenta a Cady sua impressionante M3GAN (dublada por Jenna Davis/interpretada por Amie Donald) — uma inteligência artificial que serve de melhor amiga, cuidadora e professora, com recursos avançados de aprendizado que fazem Furby parecer um peso de papel. Não demora muito para que Cady e M3GAN formem um vínculo inseparável, antes da coisa toda sair do controle e a boneca se tornar uma assassina rancorosa e sem remorso.
Entre uma sequência involuntariamente hilária e outra, o filme produzido por James Wan (Invocação do Mal) se esforça para ser um bom episódio de Black Mirror, que funcione como advertência sobre o uso excessivo da tecnologia através de um olhar mais cômico, mais simples e eficaz ao público que busca apenas entretenimento escapista. Mas também há boas mensagens sendo exploradas nas camadas mais profundas, como o fato de que a menina prefere sufocar suas emoções com um software do que confrontá-las para que possa crescer e se desenvolver, algo muito comum nas crianças e adolescentes dessa década. Uma crítica social válida e que funciona de alerta.
No entanto, no fim das contas, M3GAN promete demais e entrega de menos de terror. O ritmo desregulado constrói minuciosamente o drama de adoção e aprofunda suas protagonistas – algo que é bom-, mas cria uma tensão enorme que não se satisfaz no clímax apressado e prejudicado pela falta de violência e uso de sangue, uma vez que a classificação do filme é baixa. O massacre da boneca descontrolada vira apenas algumas poucas mortes pontuais e sem nenhum grande impacto. Há pouquíssima ênfase nos sustos e o terror definitivamente não atinge seu ápice, já que é a comédia o seu ponto forte e, nesse âmbito, realmente diverte sem fazer muito esforço.
O que nos leva à estrela do show, o computador com cara de borracha, pernas e cabelos loiros que decide ter vida própria ao experimentar as informações infinitas do mundo real, praticamente um Ultron do cinema de terror. M3GAN tem um lado sombrio que realmente intriga e seus maneirismos quase humanos provocam calafrios. Vivendo na linha tênue entre ser uma boa menina e ser uma máquina superprotetora maníaca, a boneca dança, desenha, canta Sia e mata na maior calmaria possível. Tanto os efeitos digitais quanto os práticos estão excelentes para dar vida à personagem e suas expressões maléficas.
A direção
O diretor Gerard Johnstone (Housebound) possui talento de sobra no horror, mas dá ao seu filme um aspecto sarcástico que não se leva à sério, e isso é bom, afinal, essa história só tem o brilho que possui por dar à boneca uma personalidade sínica, áspera e robótica como deve ser. Ela não é imortal, não é sobrenatural e tão pouco demoníaca, ela é “humana”, fruto da ambição e da falta de limites das empresas multimilionárias que passam por cima dos direitos humanos em prol do lucro. A condução peca no ritmo, mas a duração curta felizmente não permite que a trama caia no tédio. Na verdade, quando o filme realmente ganha força, ele acaba sem nos dar o sabor completo da farofa e deixa a vibe Exterminador do Futuro morrer muito cedo.
Veredito
Pela bizarrice e senso de humor, M3GAN faz jus ao hype criado em torno de seu lançamento e entrega um ótimo entretenimento de terror, porém, uma pitada de bons sustos e a audácia violenta de seu primo Chucky teria deixado esse computador loiro e dançante bem mais memorável. De fato, nasce uma estrela do gênero e que nos entrega absolutamente tudo que se espera de uma comédia exagerada da Blumhouse.
M3GAN, sem dúvida, teria se beneficiado de uma classificação etária mais alta, especialmente durante o ato final, mas continua sendo um filme extrovertido, com domínio completo de seu tom e que se enriquece de um tema central poderoso de mostrar o perigo de usar a tecnologia para substituir paternidade. Deixa um gostinho de quero mais… Mas uma coisa é certa: se a Annabelle tivesse WI-FI o estrago seria maior – e muito melhor.
NOTA: 7/10
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