Crítica | A Caçada – Polêmico terror social subverte o gênero e critica a política

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O terror ‘Corra!’, lançado em 2016, reacendeu com vigor a criação dos chamados popularmente “terror social”, filmes que, muito além de assustar e provocar medo, utilizam os artifícios do gênero para tocar em feridas expostas da sociedade, como racismo e xenofobia, por exemplo. De fato, o gênero certamente é o mais flexível de todos para esse tipo de abordagem e o que possui maior liberdade de expressão sem a preocupação de ser mal interpretado. Os horrores da humanidade e o lado mais obscuro do ser humano são elementos constantemente trabalhados nessas obras e que, se bem feitas, conseguem fazer refletir enquanto usa a violência, o pânico e a paranoia para segurar o espectador até o seu último minuto. E dessa nova leva, eis que surge o vibrante ‘A Caçada’ (The Hunt) que, de tão ousado e controverso, irritou o presidente dos EUA, Donald Trump, e provocou uma onda de debates sobre o real objetivo do filme.

Uma coisa no meio dessa controversa é certa: o roteiro alfineta ambos os lados da política americana, ainda que sua premissa tenha sido vendida como “ricos caçando e matando pobres”, a história vai muito além da superfície e, com inúmeros plot twists, subverte não apenas a estrutura convencional do gênero, como também sua própria premissa básica, já que a trama acompanha um grupo de pessoas que são colocadas em um local para serem caçadas até a morte por opositores políticos. Sem mergulhar em spoilers, as idas e vindas da história brincam, com muita maestria, com qual lado realmente é o caçador e qual é a vítima e como nossas atitudes imprudentes nas redes sociais muitas vezes nos igualam aos nossos maiores adversários. A mistura de ‘Uma Noite de Crime’ com ‘Jogos Vorazes’, não tem medo de expor as dores da sociedade, ainda que proporcione diálogos explícitos, feitos apenas para tocar em assuntos pontuais e polêmicos.

Apesar da direção de Craig Zobel (Obediência) ser sensacional e enérgica, em especial, na sequência final de luta, que é extremamente divertida, é o roteiro de Damon Lindelof (Lost, Watchmen, The Leftovers) que torna o longa tão absurdamente singular e corajoso. Seja na criação do “falso protagonista” ou na quebra de estereótipos dos personagens, cada detalhe é elaborado e desenvolvido com atenção. A protagonista, vivida com perfeição por Betty Gilpin (O Grito), é misteriosa, inteligente e suas ações refletem exatamente o pensamento do espectador. A atriz, ao lado da destruidora Hilary Swank (Menina de Ouro), entrega uma performance estonteante e muito carismática. Já Emma Roberts (American Horror Story), Justin Hartley (This Is Us) e Ike Barinholtz (Esquadrão Suicida) vivem papeis menores, mas fundamentais para essa quebra de estrutura na trama. Algumas cenas (e mortes!) nos pegam totalmente de surpresa, exatamente por acharmos que já sabemos como aquela história vai se desenvolver.

Outro ponto interessante é o humor, que está presente na trama e serve como uma válvula de escape para toda a maravilhosa violência gráfica. Quase que uma sátira, as piadas não são físicas, mas habitam a expressão corporal dos personagens e algumas referências da cultura pop, como o livro ‘A Revolução dos Bichos’, de Orson Welles, importantíssimo elemento, que certamente serviu de base para Lindelof e que enriquece a história com simbolismos e reflexões. Ainda que todas as engrenagens funcionem bem, há uma força extrema para que os diálogos possam ser construídos apenas utilizando estereótipos, algo que torna seus personagens robóticos e rasos, apesar do mergulho profundo do texto como um todo. Esse desequilíbrio acaba mostrando algumas brechas que enfraquecem a proposta.

Com isso, o tom cínico, irônico e satírico de ‘A Caçada’ é assertivo com seu objetivo de fazer uma profunda reflexão, não apenas sobre a política global, mas também sobre a desunião dos povos e o impacto das fake news. Ainda que seja uma trama sobre a divisão política dos EUA, o longa poderia facilmente ser sobre a polaridade da política brasileira e a guerra entre opositores extremistas. Desde ‘Corra!’ que um terror social não era tão avassalador, corajoso e controverso como este. Sem dúvida, um dos filmes mais memoráveis do ano e uma versão americana do nosso glorioso ‘Bacurau’.

Vale lembrar: ‘A Caçada’ estrearia nos cinemas brasileiros dia 28 de maio, porém, por conta da pandemia do Coronavírus (COVID-19), a Universal Pictures adiou o longa e o lançou em VOD na Amazon Prime, Google Play e ITunes.

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