Crítica | Rua do Medo: 1666 – Parte 3 – Conclusão satisfatória para uma excelente trilogia

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Após estabelecer sua base em Rua da Medo: 1994leia a crítica – e desenvolver melhor seu drama em Rua do Medo: 1978leia a crítica – agora é o momento da tão aguardada conclusão da trilogia com um retrocesso no tempo de mais de 300 anos para Rua do Medo: 1666 – Parte 3, produção da Netflix que consegue o mais complexo para uma franquia: elevar seu nível de tensão e provar sua necessidade em relação ao primeiro filme. O desfecho não apenas encerra todas as narrativas criadas nos anteriores, como também responde todas as perguntas que haviam sido deixadas em aberto, transformando-o no capítulo mais denso, sombrio e dramático dos três e, como tal, o mais surpreendente ao se afastar parcialmente de prestar homenagens à filmes de horror slasher e mergulhar em uma trama folk-horror sobre intolerância, preconceito e machismo provocados por mentiras que repercutem pela eternidade.

A trama e o elenco 

É interessantíssimo observar a progressão do roteiro inteligente dessa trilogia, que possui um modelo seriado mas que se justifica como três capítulos que andam em comunhão, e não como uma aventura dividida em parcelas com ganchos. Cada filme, de fato, tem sua função necessária e nenhum funciona sem o desenvolvimento do outro. Pistas plantadas no começo – como a presença de Martin (Darrell Britt-Gibson), que rouba a cena nesse desfecho ao lado de Josh (Benjamin Flores, Jr.) – são fundamentadas no meio e auxiliam para que o final possa fazer sentido, ainda abrindo espaço para teorias malucas e bastante reviravolta que, apesar de algumas previsibilidades, possuem seu poder de surpresa.

A preocupação da produção não está em reinventar a roda e/ou usar os clichês de clássicos do cinema de horror para subverter totalmente as expectativas, mas sim, em contar uma história coerente, cheia de referências para dar estilo e que possa dialogar com o mundo atual, mesmo tendo sua base na maluca década de 90. E convenhamos que nisso a trilogia acerta e acerta majestosamente bem. Cada capítulo agrega valor, seja nos litros de sague derramado, no nível de violência ou mesmo na construção de um passado dramático que vai influenciar gerações em duas cidades imergidas em segredos sombrios e hipocrisia. No fim das contas, o terror é bem mais humano, mais real e social do que a existência de demônios, serial killers e bruxas satânicas. E isso, meus caros, é sempre brilhante.

Enquanto Deena (Kiana Madeira – que eleva seu nível de atuação e mostra ser uma atriz jovem para ficar de olho) faz sua projeção espiritual/viagem no tempo para descobrir o que, de fato, aconteceu com a bruxa Sarah Fier no longínquo e sugestivo ano de 1666, no lugar que viria a se tornar as duas cidades no futuro, fato esse que pode ser a solução para a maldição se encerrar em 1994, a jovem revive as memórias mais intensas e tristes de Fier e descobre que, na realidade, ela nunca foi a vilã dessa trama de injustiças – algo que felizmente subverte a visão ultrapassada das bruxas na cultura pop. Pelo caminho, encontra rostos conhecidos (injustificáveis de estarem aqui uma vez que APENAS Deena fez a tal projeção para o passado, mas ok, o desfecho queria mesmo é reunir o elenco dos dois filmes anteriores e tá tudo bem) que a ajudam a narrar os eventos trágicos que estavam por vir.

Por mais de uma hora de projeção, a história é ambientada no passado e expõe a rede de mentiras masculinas que levou Sarah e sua amada (aqui vivida novamente pela atriz Olivia Scott Welch) ao julgamento público, uma vez que qualquer sugestão de relacionamento homoafetivo já era uma passagem direta para o enforcamento.

Esse plot, além de justificar a importância de ser Deena a descobrir a verdade e como Sarah foi morta pelo primórdios da homofobia, ainda aprofunda o drama da obra e a conecta diretamente com o romance que estava sendo construído no primeiro filme, dando ainda mais emoção à história das protagonistas. Se nos tempos atuais Deena e Sam eram livres para se relacionar sem serem condenadas à morte ou taxadas de bruxas pela sociedade patriarcal (ok, em partes, já que isso AINDA existe), certamente foi Sarah que pavimentou esse caminho e ela, como tal, quer vingança e justiça pela privação de seu livre-arbítrio.

Mais uma vez, são os humanos e suas mentes fechadas, somadas ao poder das crenças cegas, os verdadeiros demônios. Porém, ainda que o lado sobrenatural tenha um peso menor dessa vez, ele existe e é através de uma convocação em troca de vida longa e prosperidade que o diabo vem – de tempos em tempos – buscar vidas em Shadyside. Quando a trama do passado revela o real culpado por trazer forças demoníacas à cidade – o irritante xerife Goode (Ashley Zukerman) e seus ancestrais – e que matá-lo é a única forma de encerrar a maldição, a aventura deixa o emotivo de lado após uma cena pesada de Sarah sendo enforcada, acelera seu ritmo desenfreado e retorna para uma Parte 2 de 1994, que usa e abusa de humor, engenhocas e momentos gore para amarrar todas as pontas soltas e encerrar o ciclo com um clímax bastante divertido de assistir.

A direção

A condução de Leigh Janiak melhora ainda mais o nível, uma vez que esse capítulo depende muito mais da atmosfera de medo e drama para funcionar. A diretora abandona o sangue por um momento e equilibra as relações entre as personagens com a maior profundidade até então. Ela sabe filmar com estilo e, mais que isso, respeita o corpo feminino como vemos em poucas obras do gênero. Durante toda a trilogia, prova sua visão criativa e aguçada em desconstruir estereótipos e revigorar o horror moderno para um caminho promissor, consciente e que possui uma infinidade de obras para referenciar da forma correta. Quase uma reparação histórica de um gênero que sempre menosprezou as minorias e que pode ser uma ferramenta poderosa de crítica social se usado nas mãos certas, como faz nomes como Jordan Peele e a brasileira Juliana Rojas. Além do olhar carregado de sensibilidade, Janiak faz terror raiz, com construção de mundo, sustos agudos, muito sangue, tripas e mortes ousadas para homem nenhum colocar defeito.

Já pelo lado técnico, Rua do Medo: 1666 – Parte 3 centraliza suas forças nos figurinos de época e no cenário à la A Bruxa, no entanto, talvez seja o menos impressionante da trilogia no quesito trilha sonora e até mesmo fotografia. Certamente, para replicar o clima do período retratado, os tons escuros, frios e pouca luz artificial (como a neon que estava sendo bastante utilizada) dão sim a atmosfera sombria de obras que mexem com satanismo e seitas, mas essa falta de identidade visual é mais evidente que antes, porém, nada que tire a imersão.

Nessa trilogia existem falhas e conveniências de roteiro que servem para agilizar o desenvolvimento de personagens e conflitos. Há momentos realmente pouco inspirados, mas, surpreendentemente, nenhum deles atrapalha o conjunto da obra.

Conclusão 

Dessa forma, Rua do Medo: 1666 – Parte 3 proporciona um final surpreendentemente sinistro, comovente e gratificante para uma trilogia de terror que não fez nada além de ser engenhosa, divertida e que dá bastante progresso e sobrevida ao gênero, por mesclar – com a maestria de uma diretora brilhante – a inteligência de obras cults com a curtição distrativa de filmes populares.

Definitivamente, Shadyside irá deixar saudades até que seja revisitada num futuro próximo, afinal, o desfecho deixa espaço para sequências e derivados (já queremos um protagonizado por Josh e Martin pra ontem!). Tendo como base a nostalgia que envolve todos os públicos, a Netflix consagra mais um promissor e ousado projeto com sua estratégia de lançamento que põe ainda lenha na fogueira da rivalidade entre cinema e streaming. Ao criar uma maldição, nós recebemos, na verdade, uma benção em dose tripla.

Nota: 9,5/10

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