Crítica | Estou Pensando em Acabar com Tudo – Filme transgressor que vai dar um nó em sua mente

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Para começar, é preciso entender que ‘Estou Pensando em Acabar com Tudo’ (I’m Thinking of Ending Things), nova produção com o selo original Netflix, não é para todos os públicos e vai atingir cada indivíduo de uma forma belissimamente singular. A obra, adaptada do livro de mesmo título, do autor Iain Reid, é uma viagem surtada e absurdamente interpretativa, que abre um leque imenso de significados ocultos e metáforas que precisam de tempo para serem digeridas. Mas, uma vez que você se entrega à jornada verborrágica e teatral proposta pelo diretor Charlie Kaufman (Anomalisa), que mergulha intensamente na consciência humana, a trama te devora de uma forma tão insana que, no fim, restará poucos pedaços de você. Tendo isso em mente, podemos prosseguir com a crítica.

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A trama e elenco

Durante uma estranha e constrangedora viagem de carro com seu atual namorado, para conhecer seus pais em uma fazenda no interior, a jovem protagonista, vivida pela atriz Jessie Buckley (Chernobyl) adentra em um delírio bizarro, que mistura a realidade com um universo onde o tempo funciona de forma diferente. Nessa jornada sombria e esquisita, ela começa a perceber que precisa terminar seu relacionamento com Jake (Jesse Plemons), pois só estão juntos por comodismo. Conforme a trama avança, mais bizarra ela se torna, até culminar em um amontoado de cenas estranhas, medonhas e perturbadoras, que instigam o espectador a desvendar suas artimanhas. Há inúmeras metáforas sobre esse luto, sobre velhice e sobre o loop que os relacionamentos amorosos começam a experimentar após algum tempo. A ausência de uma saída e o conformismo das relações permeiam a trama, que também utiliza um senso de humor perverso para deixar tudo ainda mais desconexo e bugado, com se estivéssemos dentro da cabeça da protagonista.

Fora do núcleo principal, a dupla Toni Collette (Hereditário) e David Thewlis (Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban) estão absolutamente fantásticos nos papeis. O ambiente hostil, frio e sombrio, criado através de uma direção de fotografia cinza e escura, que lembra o claustrofóbico ‘O Iluminado’, ajuda que suas performances sejam propositalmente engessadas e sem conexão afetiva. A ausência de química entre o casal, assim como a falta de diálogo e entrosamento do casal protagonista, torna aquelas longas tomadas de conversa absurdamente desconcertantes e difíceis de serem assistidas. Mérito de atuações impecáveis do quarteto, especialmente a força da natureza que é Collette e sua naturalidade em fazer papeis excêntricos. Sem dúvida, uma das melhores atrizes vivas de Hollywood.

Roteiro e direção

Estamos acostumados a consumir produtos industrializados que já vem praticamente mastigados e que só precisamos rir ou chorar com suas nuances. Nesse caso, com esse filme, é necessário um envolvimento maior e mais profundo que isso. A narrativa poética da protagonista, que está sempre pensando em dar um fim no seu relacionamento, mas acaba se conformando com a situação, a absurda desconstrução de padrões pré-estabelecidos e a mistura estranha e sinistra de gêneros, todos esses elementos auxiliam na atmosfera bizarra e surtada que a história envolve o espectador, ainda sobrando espaço para subverter todas as expectativas possíveis de como imaginamos que a história irá prosseguir.

O roteiro tem total liberdade criativa para bagunçar a trama, seja de forma visual ou mesmo da maneira que constrói o enredo, sem começo, meio ou final, já que o tempo dentro dessa obra parece “passar através da história” e não a história passar conforme ele avança. É uma sofisticação narrativa absurda de uma mente que sabe muito bem trabalhar com a psicologia no cinema. Charlie Kaufman escreveu ‘Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças’ e ‘Quero Ser John Malkovich’, duas obras que exigem a mesma entrega do espectador e que, até hoje, repercutem na cultura pop.

Para desconstruir é preciso saber construir. Kaufman entrega algo completamente transgressor para a narrativa cinematográfica. O diretor pega as regras do cinema e brinca com todas elas de uma forma desconfortante de tão eficiente. Seja na montagem, que repete planos e cortes estranhos, ou mesmo no som do filme, que muda de um corte para outro em determinadas cenas, o que estamos assistindo faz parte dessa atmosfera sem limites e sem regras que a trama desenvolve, se tornando um mergulho cada vez mais profundo na ausência de padrões. Além disso, as sequências longuíssimas e os diálogos que passam por entre diversos assuntos, muitas vezes que não fazem nem sentido para os personagens, criam essa constante ansiedade e imersão, que faz o público buscar por respostas a cada novo detalhe, entregue de forma misteriosa pelo roteiro que se esforça em não montar o quebra-cabeça para você.

Desvendando a trama

O caminho para se compreender onde a trama deseja chegar, é saber que pode ter significados ocultos que só virão à tona após um tempo de reflexão. O longa, assim como o livro, trabalha as profundezas e mistérios da mente humana e brinca com as possibilidades de como poderia ser algo na vida desses personagens caso seguissem por esse ou aquele caminho. Há interpretações sobre transtorno de personalidade, sobre depressão e sobre solidão. É possível que tudo que vemos seja apenas a projeção da mente de algum personagem solitário, que desenvolve pessoas baseadas em características da sua própria personalidade. Talvez o sonho que adentramos, que se transforma em pesadelo, seja o interior da mente adoecida de alguém profundamente imaginativo e confuso.

Conclusão

Dificilmente um filme recente será tão estranho e esquisito quanto ‘Estou Pensando em Acabar com Tudo’, que propõe uma imersiva e bizarra viagem extraordinária pelas profundezas da mente humana, de uma forma que transgride todas as regras do cinema. Uma obra tão impecável em todos os seus mínimos detalhes, que deverá repercutir por muito tempo na cabeça do espectador e na cultura pop, sendo um exemplo perfeito de como o cinema pode desenvolver uma arte abstrata, rica em interpretações que não precisa se justificar. O que vale é a imersão e as sensações que a trama provoca, assim como as reflexões sobre o comodismo amoroso e a solidão. Ainda que não seja para todos os públicos, certamente será o filme mais singular que verá em muito, muito tempo.

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