Crítica | ‘Ad Astra’ nos faz perceber os motivos do coração humano

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Se há um elemento comum que conecta as obras do cineasta americano James Gray é a relação familiar como base para desenvolver a narrativa. Em cada um de seus sete longas-metragens, os laços familiares têm relação fundamental com a tragédia que se desenrola e com a personalidade dos protagonistas, esteja isso centralizado no filme (como em seu excelente debut Fuga para Odessa) ou mais “em segundo plano” (como no recente Z – A Cidade Perdida). E com Ad Astra não é diferente. Mesmo parecendo de início o filme mais diferente de sua filmografia (maior orçamento, maior bilheteria, sua primeira ficção científica), não demora muito pra ficar claro que esse aqui é um filme do James Gray.

Não significa, porém, que o cineasta esteja na sua zona de conforto. Para quem passou quase toda a carreira trabalhando seus melodramas por entre as ruas domésticas de Nova York, levar essa jornada íntima para o espaço não deve ser uma tarefa tão simples. Surpreende, portanto, o tanto de sci-fi que o filme carrega. Por mais que o foco não seja a criação de uma mitologia científico-fantástica como um space opera comum, o trabalho de criação de mundo ainda é rico e detalhado o suficiente para funcionar como ambientação e dialogar com as propostas do filme. Inclusive, se há algum espaço para leituras sociais aqui, elas surgem justamente desse futuro criado por Gray em parceria com o co-roteirista Ethan Gross.

Ainda assim, isso tudo é muito secundário, visto que o roteiro sempre escolhe o emocional em detrimento do político ou do científico. E isso já não é novidade para Gray. Não que o caráter clássico e evocativo de seu cinema prive esse tipo de diálogo, mas esse nunca é um objetivo principal. O cinema de Gray é, antes, sobre imersão emocional. A sua virtude é justamente ter as emoções e relações de seus protagonistas como o foco, o que importa é ter o espectador conectado a jornada dos personagens. Por isso, é admirável ver aqui o diretor se dedicando a esse projeto mesmo em uma produção de maiores proporções, mantendo-se fiel à sua assinatura intimista mesmo em um contexto de blockbuster que difere um pouco de suas origens.

Mas é claro que isso tem um preço. Há um elemento aqui, novo ao cinema de Gray, que surge como mediador entre o drama íntimo e a escala grandiosa: a narração em voice-over. Não dá pra precisar exatamente o que levou o diretor a escolher essa ferramenta, e soa, no mínimo, curioso que o mesmo cineasta que adaptou um conto de Dostoievski sem recorrer à narração carregada (no filme Amantes) recorra ao recurso aqui, em uma narrativa original. O problema não é nem o voice-over por si só, mas a forma como ele é usado para revelar intenções e conflitos internos do protagonista que provavelmente já estariam claras sem o auxílio dele. Se, por um lado, o recurso aumenta o apelo comercial da obra, por outro banaliza o talento único de um cineasta que sempre soube transmitir uma gama enorme de emoções e temas de forma mais sutil.

Apesar disso, ainda é um núcleo de drama fortíssimo o do filme. O arco dramático de Roy e sua travessia pelo sistema solar em busca do pai é, na base, a típica jornada do protagonista grayniano. E é por isso que, apesar da questionável escolha pelo voice-over, o cineasta ainda sabe lidar bem com esse núcleo. É a sua história. Localizar o efeito dos traumas familiares na condição dos personagens e lidar com o acúmulo de emoções na formação da tragédia são suas especialidades, e essa aptidão é maior do que as limitações, o que possibilita para o resultado catártico.

Uma peça também muito importante para chegar nisso é a atuação central do Brad Pitt. Ele consegue encarnar o arquétipo grayniano (geralmente associado ao Joaquin Phoenix, por suas recorrentes colaborações com o diretor) com surpreendente facilidade. Por mais que o voice-over tente nos conduzir, o que nos transporta emocionalmente mesmo são as sutilezas no olhar e a resignação desconfortável na expressão de Pitt. Tudo desemboca num terceiro ato carregado de melancolia e que lida frontalmente com as questões acerca da necessidade familiar (e, sobretudo, paternal) do ser humano. Parece ser uma terapia para o personagem, para o cineasta, e para o espectador, que sai da sessão bem mais ávido em investir nas necessidades afetivas com os outros, sobretudo nas relações familiares. Como todo bom filme do Gray, é ótimo não só por nos sensibilizar artisticamente, mas por nos fazer perceber os motivos do coração humano e abrir espaço para pensar sobre eles e, quem sabe, mudar nossa postura em relação a eles.

Texto enviado por Felipe Galeno

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