Crítica | ‘Três Verões’ reflete sobre o Brasil que invisibiliza as domésticas

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O cinema nacional e sua interessante busca pela veracidade, que aproxima o público através da representação do cotidiano, da cultura e da forma singular do brasileiro agir perante determinadas situações. Algo que faz filmes monótonos, como o drama ‘Três Verões’, se conectar diretamente com o espectador, em partes, claro, pelo carisma e a atuação sempre natural de Regina Casé, que vive novamente um reflexo da mesma personagem que deu vida em ‘Que Horas Ela Volta?’ e na novela ‘Amor de Mãe’. Mas, apesar dessa repetição ser alvo de críticas, é importante ressaltar uma coisa antes de começarmos: é compreensível que Casé não apenas gosta, como também se dedica a fazer um recorte de uma brasileira que dialoga diretamente com todas as demais, a mais pura personificação da nossa essência e, por conta disso, é inevitável não sentir nela uma parte de tudo que já vivemos e/ou presenciamos. Ao tirar essa comparação cansativa do caminho, você começa a perceber a singularidade de sua atuação e o motivo dela bater nessa tecla em todos os seus filmes.

Bem, como o bom e velho cinema de apreciação, o drama tem longas tomadas e expressivos momentos de silêncio, utilizados, em sua grande maioria, para construir a divisão de classes que virá a ser o centro do universo do roteiro mais pra frente, após apresentar a mansão e os seus empregados, que vivem à oceanos de distância de qualquer compreensão e empatia de seus patrões. Esse debate de classes é o forte do filme e, assim como no já citado ‘Que Horas Ela Volta?’, serve para provocar uma reflexão poderosa no público. Aliás, é interessante como esse filme, realizado alguns anos atrás, dialoga tão profundamente com o período de quarentena atual, em que a vida de uma empregada doméstica está em debate, exatamente por ser pouco valorizada por uma parcela da população que toma garrafas de egoísmo todos os dias quando acorda. É delicioso como o cinema estranhamente tem essa licença poética de fazer uma obra funcionar ainda melhor fora de seu contexto de lançamento.

Já a direção de Sandra Kogut é sensível e consegue reunir todos os elementos da história em um único ponto de vista. A diretora visivelmente dá liberdade criativa para o elenco improvisar, algo que deixa o texto bem mais natural, e ressalta os planos longos, que trazem uma aproximação interessante e um mergulho triste na vida sofrida de Madalena (Regina Casé), especialmente quando é arrastada inocentemente para o turbilhão de corrupção dos patrões. Fora isso, há muito uso de luz natural e uma paleta de cores pastéis que contrasta com o título. O ar vivo e radiante de filmes solares, que se passam durante o verão, como ‘Me Chame Pelo Seu Nome’, por exemplo, não é empregado aqui, já que essa falta de cor e energia acaba sendo um reflexo da jornada da protagonista que, mesmo feliz, nunca está em paz. No quesito emoção, há cenas que funcionam e outras que não, mas a principal delas é o momento em que Madá faz um monólogo impecável sobre sua vida, fazendo todos chorar. Esse é o único momento da história em que ela é realmente ouvida e enxergada, infelizmente, quando abaixa a guarda e sua dor e sofrimento vem à tona. Esse momento, além de mostrar a força da natureza que é Casé, ainda serve para conhecermos o background da personagem, que auxilia na empatia e proximidade.

O maior de todos os problemas, a meu ver, está na montagem e na falta de ritmo. A passagem de tempo entre os verões é confusa e não parece realmente ter passado nem um dia sequer. Esse elemento poderia ter sido melhor acentuado com pequenas mudanças no visual dos personagens, quem sabe, algo que não acontece ou não fica claro. Ainda que tenha longos planos contemplativos, esse elemento precisa ser equilibrado pela direção com o ritmo, de forma que possa movimentar a história para frente ao invés de fazê-la ficar presa em uma bolha temporal. Poucas cenas são realmente significativas para mover a trama, sendo a grande maioria apenas uma observação da rotina difícil da protagonista.

Apesar dos deslizes no ritmo e na montagem, ‘Três Verões’ é um drama contemplativo, com uma atuação poderosa de Regina Casé, que funciona ainda melhor de ser assistido em épocas como esta, em que a vida da doméstica é invisibilizada. Um filme-reflexão, de um novo cinema brasileiro que está buscando retratar diversas realidades com fortes críticas sociais e, como tal, caminha lado a lado com ‘Que Horas Ela Volta?’, já que seu foco é trabalhar a empatia e compaixão que o brasileiro às vezes esquece que possui.

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