O cinema brasileiro nunca teve limites para contar histórias grandiosas à altura de suas dimensões continentais e, curiosamente, hoje parece haver ainda mais liberdade para isso. Mesmo quando mergulha no cinema de gênero, temperado por fantasia e pela ousadia de reinventar um país em versão distópica, como acontece no instigante O Último Azul, há sempre um sabor inconfundivelmente brasileiro que dá à obra um caráter único.
Gabriel Mascaro, já conhecido por visões de futuro distorcido — em Divino Amor, pela lente da religião, e agora, pela política —, retoma sua habilidade de unir crítica social a um enredo intimista. Desta vez, a jornada é de amadurecimento feminino na terceira idade, um retrato delicado e emocionante, ainda que, em certos momentos, o filme se prenda demais ao peso de seu contexto distópico e acabe deixando de aprofundar questões que poderiam ser ainda mais ricas.
Mesmo assim, O Último Azul cria um pequeno universo poético, como uma pérola guardada em sua concha, e nos convida a refletir: estamos realmente preparados para encarar o fim de nossas vidas?
Índice
Os acertos e erros de O Último Azul
Curiosamente, Mascaro filma a vastidão da Amazônia em proporção fechada, quase como se reduzisse sua imensidão a fragmentos. O que poderia parecer uma limitação se revela um recurso preciso: ao não se perder na grandiosidade dos rios e afluentes, o filme concentra nossa atenção na protagonista e em sua jornada íntima.

Tereza, aos 77 anos, vive em uma cidade industrializada da região quando recebe do governo a convocação para se mudar compulsoriamente a uma colônia habitacional destinada aos idosos, um espaço onde, sob o pretexto de “desfrutar” da velhice, são isolados da vida produtiva da nação. Antes desse exílio forçado e de ser caçada pelo temido “cata-velho”, ela decide navegar pelos rios amazônicos em busca de um último desejo, um gesto tardio de coragem que pode alterar seu destino.
Mascaro a coloca, então, diante de um turbilhão de sentimentos até então contidos, transformando essa travessia em uma espécie de jornada do herói na maturidade. Tereza rompe com o cotidiano, encara o desconhecido e se reinventa a partir dos encontros ao longo do caminho. O roteiro, de maneira sutil, percorre as etapas clássicas mapeadas por Joseph Campbell, só que aqui, o mito da aventura é reencarnado na pele de uma mulher idosa, em sua última chance de viver plenamente.
Embora acompanhe uma trama essencialmente particular, o filme se revela um feito grandioso em termos cinematográficos. Sua estética visual e o mergulho nos detalhes amazônicos constroem uma narrativa que soa quase como uma fábula infantil, mas contada pela perspectiva de quem já acumulou uma vida inteira de experiências, o que é genial. O lado místico da região, com o raro caracol da baba azul, aliado à conexão com a natureza e seus enigmas, cria uma atmosfera envolvente e hipnótica, que continua a crescer na memória do espectador mesmo depois que a sessão termina.
Porém, o contexto distópico à la The Handmaid’s Tale é constantemente reforçado: funciona bem como base para esse Brasil reinventado (e assustadoramente possível!), mas em certos momentos o excesso de explicações acaba soando repetitivo, expositivo, insistindo sem aprofundar. Ainda assim, a combinação da fotografia — marcada por tons esverdeados e sombrios — e da trilha sonora persistente constrói um mergulho emocional criativo, que nos faz refletir não apenas sobre a jornada da protagonista, mas também sobre nossa própria percepção da velhice, da fragilidade e da velocidade com que a vida escorre diante de nós.

E para que tudo isso funcione, claro que era fundamental que a protagonista estivesse em total sintonia com a narrativa — e dificilmente alguém poderia ocupar esse espaço melhor do que Denise Weinberg (A Metade de Nós). Com humor preciso e uma expressividade intensa no olhar, sua atuação é arrebatadora e, ao mesmo tempo, prazerosa de acompanhar, especialmente sua relação apaixonante com Roberta, vivida pela fantástica atriz Miriam Socarrás.
Contida nos gestos, mas carregada de sentimentos, Denise constrói uma Tereza com leveza, que guarda algo de ingênuo, mas que, ao despertar para os sonhos que nunca pôde viver, revela uma força potente. É uma performance realmente marcante, dessas que permanecem conosco por um tempo.
Rodrigo Santoro (Bicho de Sete Cabeças), por sua vez, entra tarde na história e sai cedo demais. Como Cadu, um pescador de coração partido, entrega uma interpretação breve, mas de brilho intenso, tão intensa que nos deixa desejando conhecer mais de sua vida e de suas cicatrizes. Sua participação é meteórica: cruza a narrativa como um cometa e desaparece antes que possamos formular um pedido. Ainda assim, mesmo ao injetar uma energia emocional necessária para a jornada do herói, o filme não é sobre ele, e tudo bem que não seja.

Veredito
Sendo assim, O Último Azul se consolida como a maior obra de Gabriel Mascaro até aqui, revelando sua maturidade técnica e sua força como um dos grandes contadores de histórias do cinema contemporâneo. Mesmo lidando com temas densos e sombrios, o filme encontra espaço para o humor e para o lirismo, equilibrando o místico, a preservação da natureza e o realismo fantástico em uma narrativa sobre envelhecimento e sobre como a sociedade lida com o descarte da vida humana.
O resultado é de uma beleza profunda e poética, capaz de incomodar e de nos fazer refletir, qualidades que justificam com sobra sua vitória no Urso de Prata, em Berlim. É verdade que a obra apresenta lacunas: em alguns momentos, a necessidade de explicar demais o contexto de futuro próximo acaba limitando a imaginação do espectador, como se fosse preciso prestar contas ao universo distópico criado.
Ainda assim, esses deslizes são facilmente perdoados diante da experiência maior: um divertido road movie pelos rios amazônicos, conduzido por imagens de tirar o fôlego a cada curva. O Último Azul é de uma imersão ímpar. Com toda a sua originalidade, penetra nossos corações de forma mágica e nos faz enxergar ainda mais o futuro brilhante do cinema brasileiro pelo mundo. Mascaro entrega uma carta de amor ao tempo e à idade — algo raro de se ver.
NOTA: 9/10
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