Se há algo que Anna Muylaert domina com rara habilidade é a capacidade de recortar questões sociais e filtrá-las por uma lente de sensibilidade única. Todo mundo ainda se lembra do impacto de Que Horas Ela Volta?, que reverberou nos lares brasileiros como um soco no estômago, mas a diretora já explorava essas temáticas desde os primeiros passos de sua bela carreira autoral.
O sucesso do filme mencionado, no entanto, parece ter colocado seu cinema em uma rota de tentativa constante de repetir a mesma fórmula dramática. Após o pouco inspirado Clube das Mulheres de Negócios, Muylaert retorna em grande forma com A Melhor Mãe do Mundo, um filme que atinge o coração com força e retoma, com vigor, o olhar materno que ela sabe conduzir tão bem.
Entre todas as suas obras, talvez esta seja a que mais escancaradamente conduz o espectador à emoção, e está tudo bem. Alguns filmes existem justamente para dizer o que precisa ser dito, funcionando como instrumentos de apelo social. Mas A Melhor Mãe do Mundo vai além de ser apenas um manifesto em torno da Lei Maria da Penha. É um filme bom, afetuoso, emocional, e profundamente comprometido com o universo que deseja retratar: o amor materno em tempos de crise e o acolhimento familiar como ferramenta de salvação.
Muylaert evoca a dor de A Vida é Bela, clássico do cinema italiano, ao ambientar sua história pelas ruas frias e escuras de uma São Paulo opressora e ameaçadora. No lugar da guerra, há um conflito familiar tão devastador quanto, e, ainda assim, ela enche a tela de realismo e afeto de uma mãe leoa que faz de tudo para sobreviver.

Índice
Os acertos e erros de A Melhor Mãe do Mundo
A comparação com o clássico italiano de 1997 não é gratuita. Em A Melhor Mãe do Mundo, acompanhamos Gal, interpretada com intensidade e doçura por Shirley Cruz, uma mulher negra e pobre, que trabalha como catadora de materiais recicláveis e tenta reconstruir sua vida após escapar de um relacionamento abusivo. Ao lado dos filhos, Rihanna (Rihanna Barbosa) e Benin (Benin Ayo), ela percorre as ruas de uma São Paulo hostil, tentando transformar o caos cotidiano em uma jornada de afeto e reinvenção.
Na tentativa de proteger os filhos da dura realidade que enfrentam, Gal transforma sua rotina de sobrevivência em uma espécie de aventura lúdica, onde o amor, a proteção e o desejo por uma vida mais digna se tornam os pilares da narrativa. Entre altos e baixos, momentos mais previsíveis e outros de emoção genuína, o roteiro reconta uma história conhecida (de dor, superação e resistência) sob uma ótica maternal e profundamente brasileira. Ainda que não apresente grandes surpresas ou originalidade formal, o filme acerta ao tocar com sinceridade e afeto os temas que propõe, mas é um bom “feijão com arroz” desse tipo de drama.

Muylaert sempre demonstrou ser uma diretora excepcional na condução de elenco — e aqui, mais uma vez, comprova isso com Shirley Cruz, que entrega uma performance poderosa sob sua direção. Cruz convence no papel de Gal; ela habita a personagem com uma profundidade rara, construindo camadas emocionais, muitas vezes, apenas com o olhar e expressões corporais. É o tipo de atuação silenciosa que nos arrasta sem dó para dentro da história, fazendo com que acompanhemos sua jornada e sintamos sua dor, o que é essencial para provocar reflexão sobre os temas propostos.
Gal é o retrato de tantas mulheres invisibilizadas no cotidiano: poderia ser chamada de “guerreira”, mas no fundo só deseja ser tratada como uma mulher comum. O filme não romantiza a dificuldade de sua trajetória, e esse é um de seus méritos. Muylaert recorta com precisão o universo das mães solo que lutam diariamente por dignidade, sem recorrer à idealização. Gal representa as mulheres que sustentam as bases do país, aquelas de onde nascem os sonhos e a vontade real de transformação, algo especialmente relevante em um momento político tão polarizado como o atual.
E é verdade que Gal nem sempre faz as escolhas mais acertadas. Há um ponto de virada no qual ela decide voltar para o ex-marido — interpretado por Seu Jorge em mais um papel impactante, embora breve —, mas logo percebe que certas pessoas simplesmente não mudam. Ao entender que manter essa relação coloca seus filhos em risco, a protagonista reflete a complexidade real das relações abusivas e violentas. É doloroso assistir, mas também compreensível, justamente por ser verossímil.
Porém, o filme ganha força mesmo é nos momentos mais lúdicos, que poderiam, inclusive, ter sido mais explorados. A delicada cena do banho na fonte, por exemplo, remete à icônica sequência da piscina em Que Horas Ela Volta?, evocando uma poesia que suaviza, mesmo que por instantes, a dureza da narrativa. Esse mergulho sem medo entre a fantasia e a realidade faz uma falta enorme aqui.

Muylaert, com seu apego ao realismo cru, opta por uma abordagem ainda mais intensa dessa vez. Em certos momentos, esse peso funciona como alerta; em outros, pode acionar gatilhos que talvez merecessem ser conduzidos com mais delicadeza emocional e refinamento cinematográfico. A pobreza entristece e, por mais que a história aponte para reflexões positivas no desfecho, nenhuma conclusão otimista é capaz de suavizar o amargor de uma realidade que está longe de oferecer qualquer escapismo.
Veredito
Com isso, Anna Muylaert retorna ao terreno familiar de histórias socialmente engajadas com A Melhor Mãe do Mundo, uma narrativa que, embora recicle elementos já vistos em sua filmografia e em outros dramas sociais, ganha nova vida ao ser filtrada pelo olhar de uma mãe solo que transforma os escombros da realidade em abrigo para seus filhos.
O filme nos transporta para um universo de dor e resiliência, evocando a sensibilidade de A Vida é Bela, mas adaptando-a ao cenário brasileiro de uma mãe leoa que recorre ao lúdico para proteger seus filhos da dureza do mundo. Shirley Cruz é um espetáculo à parte. Sua presença em cena é arrebatadora, e o filme encontra nela sua maior força e razão de ser.
Ainda que tropece em alguns aspectos técnicos e que a condução emocional por vezes pareça fabricada, o filme pulsa verdade. Como uma mãe que transforma sucata em brinquedo, A Melhor Mãe do Mundo pega o que poderia ser um drama qualquer e o reimagina com empatia, ternura e força. Mesmo com sua previsibilidade, ele cumpre seu papel: acolher, emocionar e provocar reflexão. No fim, é como um cobertor remendado, imperfeito, mas carregado de calor e cuidado, que cobre, ainda que por instantes, a ferida aberta de tantas realidades esquecidas no Brasil.
NOTA: 7/10
Clique aqui e compre seu ingresso para o filme
LEIA TAMBÉM:
- Crítica | Bailarina – Um espetáculo à parte no universo John Wick
- Crítica | Confinado: quando a reciclagem de ideias vira armadilha
- Crítica | Lilo & Stitch – Ohana significa remake com alma e coração
Aproveite para nos acompanhar nas redes sociais: Facebook, Twitter, Instagram, Youtube e também no Google News.
Quer receber notícias direto no seu celular? Entre para o nosso canal no WhatsApp ou no canal do Telegram.
Quer comentar filmes e séries com a gente? Entre para o nosso canal no Instagram.