Para fechar o ano com estilo icônico e reflexão ácida, Adam McKay proporciona seu possível melhor trabalho na dramédia Não Olhe Para Cima (Don’t Look Up), filme original da Netflix que corre todos os riscos possíveis – e entrega tudo que o mundo precisa compreender sobre os danos destrutivos do negacionismo americano.
Carregado de ironias afiadas, o cineasta cria uma sátira deliciosamente selvagem e distinta das demais sátiras do cinema atual pois mergulha – sem dó nem piedade – nos bastidores da política e na podridão que habita esse meio, afinal, com dois anos de pandemia global e governos distorcendo a realidade – inclusive, claro, no Brasil – essa obra não poderia ser mais atual e direta. Uma amarga representação de tudo que há de pior nas mãos de quem, tecnicamente, deveria ser a solução.
A trama e o elenco
A premissa de Não Olhe Para Cima é bem simples e descomplicada: dois cientistas dedicados ao trabalho – e pouco reconhecidos pelo esforço – acabam por descobrir que um asteroide de proporções colossais está vindo em direção à Terra e, em pouco mais de 6 meses, deve provocar a extinção da humanidade. Dr. Randall Mindy (Leonard Dicaprio) e a aluna Ph.D. Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence) até tentam, mas o mundo – infelizmente – não está em suas mãos e a busca por tentar mostrar à todos que o fim de tudo está próximo nos proporciona uma enorme angústia (a famosa passação de raiva), uma vez que ninguém parece entender a seriedade da situação. Nada parece ter importância, mas qualquer coisa vende mais que o fim dos tempos, não é mesmo? E os líderes políticos, a presidente Janie Orlean (Meryl Streep) e seu filho/chefe de gabinete Jason Orlean (Jonah Hill), são a pura representação do negacionismo trumpiano.
Com tom cômico, tudo parece absurdo e a humanidade – entorpecida por um amontoando de nada – não enxerga o gravidade do que está diante de seus olhos. É mais fácil ignorar, não olhar para cima, do que enfrentar o problema – e qualquer semelhança com a pandemia global da Covid-19 que colocou o mundo em perigo nos últimos dois anos não é mera coincidência. É vacina tendo sua eficácia questionada por antivacinas, é superfaturação na venda de máscaras e produtos de higiene, ou seja, a dor e o sofrimento sendo monetizados, mesmo com a certeza de que a raça humana vai ser destruída. Quem disse que o capitalismo tem seus limites?
Além de todas as subtramas instigantes, existem tantas performances excelentes em Não Olhe Para Cima que são difíceis de numerar. Dicaprio pode ter feito seu desempenho mais engraçado e, ao mesmo tempo, perturbador como um cientista que não tem sua descoberta levada à sério. Lawrence, mais uma vez, segue um poço de carisma e proporciona as melhores piadas. Mas Hill e Streep não ficam pra trás. A dupla está absolutamente insuportável no papel e ajuda na imersão do ódio que o espectador experiencia.
Mas o que o torna tudo tão engraçado e diferente é que essa trama de erros e consequências é conjurado de uma forma divertida e genuinamente aterrorizante porque, mesmo que satírico e exagerado, o fato é que a situação ainda é nova e atual.
A direção
Ainda que certamente possa passar a sensação de que o senso de humor está hiperbólico e há coisas que não são nada engraçadas – e até desrespeitosas para ser bem honesto – é exatamente esse o ponto que Adam McKay (A Grande Aposta, Succession) deseja atingir, semelhante ao ousado e à frente de seu tempo Dr. Fantástico, por exemplo, com personagens e situações altamente excedentes. São pessoas tão odiosas que você começa a torcer para o asteroide.
O diretor – consciente da amargura que quer provocar – instiga um misto de sensações internas e brinca com estereótipos ao criar sua caricatura imperfeita do meio político atual.
Porém, o ritmo não ajuda tanto assim na imersão. Enquanto a trama se mantém afiada e cômica, a narrativa possui grandes momentos de queda e alguns até bem lentos e arrastados, mesmo tendo a montagem como ponto forte (característica do diretor), especialmente no começo intrigante e no desfecho catártico. O humor funciona boa parte do tempo, mas não sustenta por completo as lacunas dramáticas do roteiro e nem o esforço do elenco em fazer graça com qualquer mínimo detalhe.
Conclusão
Por vezes depressivo, por vezes hilário, Não Olhe Para Cima é um indutor de ansiedade que expõe o lado podre da política e se prova uma surpresa divertida, ácida e raivosa sobre as consequências do negacionismo. Um daqueles filmes que deve dividir o público com suas opiniões polêmicas, mas feito sob medida para gerar discussões e nos fazer refletir sobre a quantidade errada de poder dado à líderes perigosos como Trump e Bolsonaro.
Ainda que cômico, a trama afiada ultrapassa os limites e se prova bem mais inteligente do que uma simples comédia política satírica, afinal, soa como um grito de desespero, um apelo angustiante para que possamos olhar mais atentamente para o que está acontecendo ao nosso redor. Adam McKay condena a humanidade à um fim irônico e questiona se estamos mesmo olhando com atenção para o lugar certo. Nos últimos minutos de um ano sem grandes riscos e muita promessa, a Netflix entrega sua produção mais entusiasmada, divertida e deprimente.
Nota: 8/10
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