Crítica | Alice Júnior – As desvantagens de não ser invisível em filme para aplaudir de pé

O ensino médio é um período realmente complexo na vida de todos nós. Agora imagina precisar lidar com todos os dilemas da adolescência sendo uma pessoa transexual, ainda mais com uma sociedade conservadora e hipócrita, que oprime a identidade de gênero, a sexualidade e a liberdade dos jovens em prol de uma comunidade onde o diferente não é aceito. Essa é a premissa do drama teen ‘Alice Júnior’, que por si só já nasce sendo a resistência dentro de um cinema que ainda explora muito pouco o assunto e não tem coragem de dar protagonismo a personagens trans/travestis em filmes voltados para o público jovem. Carregado de muita energia, humor afiado e nuances cativantes, o longa brilha na perfeição de como se torna absolutamente didático e essencial entre tantos outros filmes já exaustivos, de protagonistas como Maisa Silva ou Larissa Manoela, que não saem da zona de conforto. Aqui, a zona de conforto é desafiada, virada do avesso e questionada com maestria por um roteiro certeiro e contemporâneo.

A trama e o elenco

A história de Alice Júnior, escrita com destreza por Luiz Bertazzo (O Coração que Falava Demais), se inicia quando Alice, uma jovem YouTuber carismática, que se identifica como transexual, precisa deixar sua cidade, em Recife, e ir para o conservador e religioso interior do Paraná com seu pai. No lugar, ela começa a estudar em um colégio católico que não aceita sua identidade de gênero e oprime sua personalidade. Enquanto sofre bullying diário dos colegas de turma, Alice entende que não há nada de errado consigo mesma e se torna uma voz ativa na revolução por mudanças da escola. Com muita habilidade e criatividade, a produção utiliza a linguagem da internet para dar ao filme um ar ainda mais contemporâneo e legítimo, com o uso e abuso de memes, frases de efeito e rotoscopia nas cenas, que são montadas com um ritmo enérgico e instigante. Porém, a sagacidade principal vem da entrega e magnetismo da jovem Anne Celestino Mota, que mergulha de cabeça na vida da protagonista e se permite viver uma performance realmente impecável.

Somado a atuação da Anne, que leva o público do sorriso às lágrimas com facilidade, o ator Emmanuel Rosset (Ferrugem), que vive seu pai, serve tanto de alívio cômico quanto de porto seguro para a personagem. Sua relação transborda amor e empatia. A dupla está encantadora e a química é ótima. Fora isso, dos demais personagens estão bons e, apesar o texto ficar bem explícito em algumas cenas e faltar naturalidade por parte do elenco mais jovem, os acertos da produção sobressaem esses problemas e não devem atrapalhar a imersão do público, ainda assim, a relação entre pai e filha é o ponto alto, assim como a espontaneidade de como a obra expõe e educa sobre pontos importante na vida de uma trans/travesti, como o uso do nome social, por exemplo, e como esse fato, que pode parecer banal para muitos, tem um significado imenso na vida de quem nasceu no corpo que não se identifica.

Quebra de paradigmas

Alice Júnior é conduzido com delicadeza por Gil Baroni (O Amor de Catarina), que também mostra talento em lidar com tramas juvenis ao mesmo tempo que entrega uma narrativa sofisticada, com ritmo eletrizante e que lembra produções estrangeiras, como a série da HBO, ‘Euphoria’, especialmente pelo uso de cores fortes e neon na fotografia. Como uma habitual comédia adolescente, a trilha sonora também está perfeita, repleta de sucessos nacionais, assim como a construção da história, que utiliza os clichês teens, como o dilema do primeiro beijo, as descobertas sexuais e a relação constrangedora com os pais, dentro de um contexto onde a protagonista precisa lutar duas vezes mais para encontrar sua felicidade, reflexo de uma sociedade opressora.

Alice questiona sua existência em determinado momento da trama e a cena é profundamente linda, sensível e que serve de reflexão para todos os tipos de público que irão se deparar com essa obra na Netflix. O humor também é interessante e certamente voltado para os mais jovens, conhecedores dos memes de sucesso. Até mesmo a presença especial da atriz e cantora Gretchen agrega uma vibe hilária, que normatiza a protagonista e tem o objetivo de mostrar apenas como seu mundo colorido e desafiador funciona, sem cair em estereótipos pesados e tristes que filmes com a temática LGBTQ+ costuram cair em prol apenas de chocar o público. Há espaço para trabalhar sororidade, empatia e aceitação, como poucos filmes atuais, especialmente brasileiros.

Conclusão

E é com roteiro didático, alegre e transgressor, que ‘Alice Júnior’ surge no momento tardio, que falta representatividade transexual nos filmes adolescentes, mas conquista através de uma sensibilidade ímpar nesse tipo de obra teen nacional. Sobre as desvantagens de não ser invisível, Anne Celestino Mota tem uma performance carregada de energia e inteligência, que diverte, emociona e educa o espectador, que vê seu coração ser envolvido pelos desafios da vida da protagonista. De longe, o filme brasileiro mais cativante do ano e que merece ser aplaudido de pé pela forma como desafia, questiona e quebra todas as barreiras que infelizmente ainda existem em nossa sociedade conservadora. Pessoalmente, obrigado por esse filme, ele é um braço caloroso que todo jovem LGBTQ+ merece receber.

Nota: 9

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