Crítica | ‘Enola Holmes’ é uma história clássica e feita sob medida para os dias atuais

Novos tempos necessitam novas narrativas. Convivemos na cultura pop com algumas histórias por tantas décadas, que nos esquecemos que muitas dessas tramas que aprendemos a amar são reflexo de uma época distante, que certamente não dialoga mais com as ideologias e conhecimentos de hoje. E aí entra o dilema: como atualizar sem apagar a identidade de algo tão orgânico e poderoso como, por exemplo, as histórias do detetive inglês Sherlock Holmes? Tendo em vista que o personagem foi criado por volta de 1890 e, desde então, teve mais de uma dezena de livros, também adaptados para o cinema e para a TV inúmeras vezes, mas todas elas não possuíam o que o longa ‘Enola Holmes’, produção adquirida pela Netflix, possui: uma atualização inteligente e essencial, feita de forma natural e sem deixar a essência do sofisticado humor inglês de lado. É um filme feminista em sua essência, assim como ‘Orgulho e Preconceito’ e ‘Frida’ (2002) são. Mas, ultrapassando rótulos, é um filme desenvolvido com perspicácia para o público jovem de 2020 e que, assim como o recente ‘Mulan’ também faz, não é um manifesto político, mas sim uma reparação história de tramas grandiosas, porém, majoritariamente masculinas.

A trama e o elenco de Enola Holmes

Sherlock é um sujeito cômico, interessante e criativo, mas como seria se ele fosse do sexo feminino na época em que nasceu? Ou melhor, e se ele tivesse uma irmã mais nova, com uma mente progressista e desconstruída em relação ao obscuro e machista século XIX? Essa é a proposta da autora Nancy Springer ao escrever a saga de livros de Enola Holmes, sendo o primeiro deles, ‘O Caso do Marquês Desaparecido’, lançado em 2006, que serve de base para o filme da Netflix. Nessa reimaginação, a mãe de Enola desaparece misteriosamente e ela, com a mesma eficiência de detetive de seu irmão, o lendário Sherlock Holmes, decide seguir as pistas para encontrá-la. Porém, pelo caminho, Enola colide com desafios e acaba se envolvendo em outro grande mistério de um jovem Marquês que desapareceu. Dentro dessa premissa sensacional, o roteiro dá pinceladas de reflexões e utiliza o feminismo como pano de fundo para construção de uma jovem de 16 anos que, diferente da maioria, não deseja se casar ou mesmo ter filhos, mas sim, descobrir suas vocações e encontrar seu espaço na sociedade patriarcal. Enola é a narradora de sua própria história, a princesa que não precisa ser salva por homem nenhum e, com muita quebra da quarta parede no melhor estilo ‘Fleabag’, mostra para o público todo o seu deboche para o modelo de mulher que ela tanto abomina.

Sabiamente escolhida para viver a jovem protagonista, Millie Bobby Brown (Stranger Things) mostra um lado ainda inédito: que sabe fazer comédia com bastante eficiência e carisma. A atriz está perfeita em sua performance e consegue provocar empatia no espectador. Seu humor é ácido, mas sem exageros e, ainda comparando com Fleabag, não apenas pelo modelo de interação com o público, mas seu tom sarcástico lembra e muito o trabalho de Phoebe Waller-Bridge, mixado com a força de Keira Knightley em ‘Orgulho e Preconceito’ e uma pitadinha de revolta de Hailee Steinfeld, na série ‘Dickinson’. Por outro lado, temos um Sherlock vivido por um Henry Cavill (The Witcher) sem muita expressão, o que acaba sendo positivo, uma vez que esse não é o palco para o personagem brilhar e nem roubar a cena. Mas, definitivamente, talvez seja o pior Sherlock até então, já que Robert Downey Jr. e Benedict Cumberbatch estabeleceram um padrão altíssimo. Sam Claflin (Como Eu Era Antes de Você) e Helena Bonham Carter (Harry Potter e o Enigma do Príncipe) estão bem, mas nada além disso.

Qualidade técnica

A atmosfera sombria e suja de uma Londres progressista serve como cenário para a trama e, de forma interessante, o roteiro consegue mostrar núcleos de mulheres fortes espalhados pela cidade de maneira clandestina. Algo que instiga bastante a nossa curiosidade. Os efeitos especiais, assim como a direção de arte e fotografia estão impecáveis e realmente remetem ao universo criativo dos livros de Holmes, até mesmo bebendo da fonte de franquias como ‘Harry Potter’, já que a identidade visual (e até mesmo algumas cenas de ação) lembram bastante a saga do bruxinho. Até com os figurinos a protagonista tira sarro, quebrando os padrões do que é feminino ao deixar claro que não é uma “dama”. A direção de Harry Bradbeer (que inclusive dirigiu alguns episódios de ‘Fleabag’ e ‘Killing Eve’) é repleta de humor e planos sofisticados, condizentes com a proposta.

Roteiro

De forma inteligente, a montagem dá ao filme um ritmo cheio de energia e criatividade, que narra a história da protagonista com bastante entusiasmo, quase como se fossem páginas de um livro sendo abertas uma a uma. Porém, há deslizes que se tornam cada vez mais problemáticos conforme a trama avança. Há duas narrativas distintas sendo desenvolvidas ao mesmo tempo: Enola precisa encontrar sua mãe e Enola deseja salvar o menino Marquês que está em perigo. Esses dois caminhos acabam não conversando entre si e, o foco inicial, que era encontrar sua mãe e desvendar o mistério de sua fuga repentina, acaba sendo ofuscado por algo menos interessante, que é a trama do Marquês (vivido por Louis Partridge). Até aí tudo ok, o problema está na forma como o ritmo perde o fôlego da metade para o final e o terceiro ato se resolve tão facilmente, que realmente desanima, especialmente se tratando de uma história mirabolante de investigação que necessita de plot twists mais poderosos. O roteiro, inicialmente inteligente, se torna totalmente preguiçoso no clímax e entrega um desfecho bem ruim, que não amarra as pontas soltas, mas apenas resolve os dilemas sem grandes explicações e é isso. Além do mais, falta ação.

Conclusão

Com humor afiado e uma Millie Bobby Brown estonteante de tão carismática, ‘Enola Holmes’ é uma história clássica, divertida e cheia de energia, feita sob medida para os dias atuais, ao mesmo tempo que entrega a identidade icônica do universo mirabolante de Sherlock Holmes. O roteiro consegue ser progressista, político e revolucionário sem parecer que foi feito apenas para anular um personagem que já estamos cansados de conhecer. Realmente um frescor e, se não fosse pelo fato de que perde parte do seu fôlego durante o mergulho, o longa da Netflix seria um irmão próximo da maravilhosa ‘Fleabag’.

Nota: 8

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