Crítica | Sombras da Vida – Amor e o luto em um dos melhores filmes da década

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Uma vez ou outra o cinema tem dessas de criar uma obra tão profundamente impactante que, quando termina, vem o momento de respiro, de reflexão e de absorção. Quando o cinema ultrapassa todas as barreiras do entretenimento e penetra bem fundo na sua consciência, é por esse motivo que é chamado de arte. Há filmes que são um manifesto, filmes que são uma distração e filmes que servem como remédio para as dores da alma. Esses últimos, mais escassos, não acontecem todos os dias. Mas aconteceu em ‘Sombras da Vida’ (A Ghost Story), drama de terror recém chegado à Netflix que constantemente tem sido encaixada no que alguns chamam de “pós-horror”, ou seja, filmes de terror com viés mais dramático, político e reflexivo, que utilizam apenas o elemento obscuro do gênero para criar uma atmosfera densa e apreciativa (algo que já existia há muito tempo!). Nesse quesito, como forma de provocação, ‘Sombras da Vida’ realmente se encaixa. Mas o conceito dessa obra é mais profundo que apenas isso.

Se destrinchar sua trama e seu roteiro melancólico e doce, é como assistir um filme de terror do ponto de vista da assombração, que está presa e interligada à vida de alguém que amou enquanto era vivo e que, por conta desse fio invisível que os une, permanece para sempre nesse loop infinito esperando o dia em que ambos possam ficar juntos novamente. A trama passeia por tantas características, de diversos gêneros, que é difícil encaixá-lo em apenas uma categoria e é essa mistura espetacular que o faz ser tão absurdamente contagiante e delicioso de ser assistido. No romance, é  melancólico e honesto; no suspense, sabe instigar nossa curiosidade; no drama, constrói uma história coerente e realista; e no terror, assusta com sua simplicidade e maestria, ao mostrar a rotina cansativa e triste de ser uma assombração solitária. Por ser um filme com longos momentos de plenitude e silêncio, a trilha sonora é poderosíssima, tanto para emocionar quanto para criar a atmosfera de solitude. Fora isso, a letra da canção-tema fica na memória por um longo período.

Carregado de metáforas, como o próprio fantasma ser uma representação física do luto, a trama utiliza muito bem todas as suas alternativas para criar emoção e empatia no público, mesmo se tratando de um protagonista que é a pura personificação do Gasparzinho, quase que uma fantasia de criança de Halloween, algo que poderia facilmente ser motivo de piada, mas que é tão bem conduzido pelo diretor David Lowery, que seu visual funciona mais para nos deixar tristes e apreensivos, do que para qualquer outra coisa.

É realmente impressionante a sensibilidade do diretor e seu olhar sutil diante das cenas propostas, desde a proporção de tela, que lembra uma câmera Super 8 e dá ao filme um ar nostálgico, até os longos planos, como a cena em que a protagonista come uma torta inteira sozinha em plano-sequência, que leva quase 6 minutos e que serve como divisor de águas para o filme: se o espectador passou dela, certamente foi fisgado pela história e irá se emocionar, caso contrário, talvez o filme não seja mesmo para todos os públicos, não por precisar de mais atenção e dedicação, mas sim, por seu desenvolvimento realmente lento, algo que na grande maioria das vezes afasta quem busca mais ânimo.

Por outro lado, esse tom melancólico, angustiante e quase poético é puro reflexo da jornada do protagonista, vivido pelo ator Casey Affleck (Manchester à Beira-Mar). Talvez nunca antes a dor da eternidade tenha sido tão bem expressada nos cinemas. O tédio, a solidão e a saudade permeiam sua história através do tempo. Rooney Mara (Ela) também está excelente no papel de uma pessoa que sente tão fortemente a dor da perda, que nem ao menos consegue se expressar. Seus momentos de choro são cortantes e muito sensíveis, ressaltados pelos planos longos que o diretor deixa rolar sem pressa, sem aflição e sem correria, apenas observando o passar dos dias, dos meses e da vida, tanto para quem está vivo, quanto para quem irá viver uma eternidade na busca incessante pelo amor interrompido. Como o próprio fantasma diz, em uma conversa com outro fantasma vizinho, o tempo passa de forma diferente entre os vivos e os mortos e o amor uma vez perdido, pode nunca mais retornar.

Dessa forma, ‘Sombras da Vida’ é uma obra-prima tão singular e diferente, que chega ser difícil encontrar defeitos concretos. A sensibilidade absurda da direção, a trilha sonora majestosa e as emoções que a história provoca, colocam esse como um dos melhores e mais belos filmes da última década com bastante facilidade. Desde ‘Ghost: Do Outro Lado da Vida’ que uma história sombria de amor, luto e saudade através do limite da vida e a da morte não era tão deslumbrante de ser apreciada e, uma vez que fisgar seu coração, permanecerá com você para sempre.

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