Crítica | ‘Destacamento Blood’ traz crítica social afiada e importante para a atualidade

Como reparação histórica, o diretor Spike Lee talvez tenha desenvolvido um de seus filmes mais importantes desde então, tanto por ser extremamente atual, quanto por servir como uma sátira reflexiva sobre o papel do negro na história dos Estados Unidos da América. Logo no começo de ‘Destacamento Blood’ (Da 5 Blood), da Netflix, ele já alfineta o fato do negro lutar nas guerras americanas, mas nunca ter seus direitos básicos estabelecidos e respeitados no país. Como habitual em sua obra, o texto aborda o racismo estrutural e os transtornos pós-guerra, ao acompanhar um grupo de amigos, que se denominam “Bloods”, retornar ao Vietnã após alguns anos desde o fim da guerra que resultou em milhões de mortes, para recuperar uma carga de ouro que foi perdida por eles em um local de confronto. Agora, na 3ª idade, precisam lidar não apenas com os traumas e as lembranças, mas também com os conflitos gerados pelo lugar.

O diretor tem pleno domínio de sua obra e sabe trabalhar, com perfeição, os conceitos de cinema afim de quebrá-los. Seja com a mudança de proporção de tela quando a história mergulha no passado ou nos cortes similares, repetidos em outros ângulos, Lee não apenas conta sua história de guerra como deseja, como também escolhe chocar o espectador com imagens de arquivo realmente perturbadoras, de crianças mortas na guerra e assassinatos, é importante assistir esses trechos com cautela, pois são pesados. Mas não foram colocados pelo diretor apenas pela violência gratuita, já que o efeito é exatamente fazer refletir sobre o passado trágico do mundo e até onde fazer guerra vale a pena. Os protagonistas, homens negros sobreviventes do confronto que durou de 1955 a 1975, agora estão situados em um Vietnã moderno, turístico e colorido, que tenta deixar os efeitos da guerra no passado, porém, um dos protagonistas, com transtorno pós-traumático, revive essas lembranças e se torna responsável pela missão desandar.

Com lugar de fala e perspicácia, Lee não faz críticas ácidas apenas ao sistema branco e racista, mas também à uma parcela dos negros que apoiam decisões arbitrárias as que farão bem à comunidade negra, como um dos personagens que votou em Trump nas eleições, por exemplo. O viés político do roteiro é atual, especialmente após a onda de protestos no mundo com a morte do segurança negro George Floyd por um policial branco. A trama, ainda que situada no Vietnã, dialoga com diversas críticas sociais e se encaixa como uma luva no contexto do momento. No entanto, Lee se propôs fazer um filme de guerra e ele faz. Há ótimas sequências de ação, estreladas pelo astro Chadwick Boseman (Pantera Negra) e a direção de Lee escolhe fazer sua própria versão, atualizada para um contexto negro, de ‘Apocalypse Now’, já que faz uma sátira de enquadramentos utilizados pelo diretor Francis Ford Coppola e também da icônica trilha sonora do filme de 1979. Essa decisão é, mais uma vez, uma reflexão, ainda que o filme de Coppola seja um marco do cinema, é apenas um recorte da história que novamente dá protagonismo aos brancos.

O elenco é fantástico e todos os atores possuem uma evidente liberdade de atuação, o que ajuda na química entre eles ser tão deliciosa de ser assistida. Ainda assim, o destaque fica para o ator Delroy Lindo (Malcolm X) e sua performance digna de Oscar, especialmente quando quebra a 4ª parede e faz seu monólogo diretamente para o público. Jonathan Majors (The Last Black Man in San Francisco) também se destaca de forma positiva. É muito provável que esses dois, em especial, estarão nas premiações do ano que vem. Dessa forma, com uma direção espetacular e um elenco confortável no papel, não poderia ser um filme de guerra se não fosse violento, não é mesmo? Há desfechos trágicos corajosos e bastante sangue e confronto quando o drama cômico dá lugar um thriller instigante e agressivo, parecido com a premissa de ‘Diamante de Sangue’, quando os planos para resgatar esse tal ouro perdido na floresta começa a sair dos trilhos. Porém, o roteiro dedica mais tempo para aprofundar os personagens antes da jornada do que durante a aventura violenta. Essa falta de equilíbrio é provocada pela longa duração do filme. A trama teria mais dinamismo caso fosse desenvolvida em menos tempo.

Com isso, Spike Lee entrega sua própria versão ácida e cômica de ‘Apocalypse Now’ em ‘Destacamento Blood’, que se consagra como um de seus filmes mais interessantes. Mas não apenas isso, a trama faz uma releitura através do ponto de vista de homens negros, que são enviados para guerras cruéis por seus países racistas, quando nem ao menos os direitos básicos como cidadãos são respeitados. Mas não se engane, a crítica social é deliciosa e afiada, mas vem carregada de muita violência, tiroteio e explosões, ou seja, tudo que faz uma obra de guerra ser boa. Mais atual, impossível. Sem dúvida, o melhor filme original da Netflix do ano e que sua mensagem possa ecoar ainda por muito tempo.

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