Crítica | Hamnet – Um filme sobre como a dor vira arte

Uma das histórias mais contadas (e cansativamente recontadas!) da humanidade ganha aqui uma surpreendente nova camada ao se afastar da lenda para olhar o que existe por trás dela. Hamnet: A Vida Antes de Hamlet é a prova de que o cinema não se esgota quando escolhe revisitar o já conhecido, desde que encontre um ponto de vista honesto. A ganhadora do Oscar Chloé Zhao (Eternos, Nomadland), fiel ao seu delicioso cinema intimista e de delicadeza quase silenciosa, opta por revelar o lado mais humano de alguém eternizado pela cultura popular. E acerta categoricamente.

Claro, transformar William Shakespeare em uma figura terrena é um desafio e tanto, mas o filme (e sua diretora experiente), produzido por Sam Mendes e por Steven Spielberg, encontra força justamente ao deslocar o foco para sua família comum, oferecendo um retrato íntimo, cru e sensível do impacto que uma perda devastadora de um filho pode ter na vida dos pais.

De fato, a magia está em nunca saber exatamente o que Shakespeare sentia ao escrever suas peças eternizadas, mas o romance de Maggie O’Farrell, que inspira o filme, mergulha de cabeça na complexidade e, ao mesmo tempo, na simplicidade de um amor avassalador, de uma maternidade profundamente devotada e de um pai em busca de si mesmo. Doce sem ser ingênuo, cortante quando necessário, este é, sem dúvida, o trabalho mais tocante da carreira de Zhao.

Os acertos e erros do filme

Embora o livro se permita embriagar no campo da ficção, levantando hipóteses e exercendo sua liberdade criativa para explorar esse momento devastador da família inglesa — que mais tarde serviria de inspiração para a tragédia Hamlet —, somos apresentados a esses personagens em instantes profundamente íntimos. Do romance intenso entre o poeta (vivido pelo sempre ótimo Paul Mescal) e Agnes (Jessie Buckley), sua companheira fiel, ao nascimento conturbado dos filhos e, mais adiante, à perda trágica de um deles, evento que transforma para sempre a dinâmica da casa e o estado emocional de todos.

Hamnet acompanha, sobretudo, a rotina de Agnes e sua conexão com a natureza, com o campo e com o místico — fica implícito que ela descende de uma linhagem de bruxas —, além de seu papel como mãe superprotetora e como a presença feminina que sustenta um homem que, não raras vezes, coloca o trabalho acima da vida doméstica.

A partir disso, Chloé Zhao constrói uma obra sensorial potente, com um quê teatral irresistível e trágico, não apenas por meio de cenas grandiosas e muito bem filmadas fora de estúdio, mas ao compreender o poder narrativo do cinema através de imagens que, mesmo silenciosas, transbordam simbolismo e beleza, como a cena de arrepiar de Agnes parindo sua filha ao ar livre, sob uma árvore. O filme quer falar sobre luto, saudade e esse sentimento de interrupção, mas também sobre o papel da mulher em sua forma mais natural e selvagem, sem economizar afeto e poder.

Um dos melhores atores de sua geração, Paul Mescal já fez muito com o pouco que tinha em mãos, em filmes como Gladiador 2 e Aftersun, e entrega aqui o sentimentalismo essencial do poeta melancólico e depressivo, com um carisma que cria conexão imediata com o público. Há nele o tal do “charme artístico” e uma doçura que ajuda a humanizar a figura de Shakespeare, como se aproximasse o mito do homem (e do pai) que ele possivelmente foi, e o seu processo profundo em transformar o luto enraizado em dramaturgia. Ainda assim, o filme deixa claro que esta não é, de fato, a história dele.

Não adianta, Hamnet é sobre Agnes e sobre a perda que a atravessa — ainda que essa dor reverbere e inspire todos ao redor de maneiras diferentes. Jessie Buckley (Men – Faces do Medo) surge, então, como a força mais impressionante do cinema neste ano e isso deve lhe render um merecido Oscar. Sua atuação é o verdadeiro eixo emocional que segura as mais de 2 horas de filme, capaz de sustentar toda a jornada com uma entrega colossalmente satisfatória. Mas isso é óbvio quando se trata dela, né? Brilhante e precisa, Buckley nunca soa excessiva e transforma Agnes em muito mais do que o arquétipo da “mulher forte” ou da “esposa dedicada”: ela é o centro gravitacional desse universo. O menino Jacobi Jupe (que dá vida à Hamnet) também rouba a cena como uma surpresa promissora.

O roteiro é simples e linear, mas sabiamente explora como a dor, o luto e as perdas pessoais atravessam e inspiram a arte, em especail o teatro, não importa o tempo. O arco dramático é um pouco óbvio, mas se consolida a partir da perda de um dos filhos — um tema que Zhao já explorou em Nomadland — e, a partir daí, o filme assume um tom mais sombrio e melancólico. A trilha sonora de Max Richter, com peças profundamente emotivas como a já onipresente nas redes sociais “On the Nature of Daylight”, amplifica essa dor até seu ponto máximo, sem jamais parecer manipuladora ou piegas. O cena final é de partir o coração e deve arrancar lágrimas genuínas do público, afinal, não existe nada mais difícil do que aceitar que alguém nunca mais irá voltar para sua vida.

Veredito

Hamnet: A Vida Antes de Hamlet é cinema em sua forma mais essencial. É dramaturgia e tragédia, matérias-primas que moldaram a história da arte, atravessadas pelo olhar sensível de Chloé Zhao, que transforma tudo isso em uma experiência sensorial, feminina, melancólica e profundamente emocional. Um começo arrebatador para o cinema em 2026.

Sustentado por uma atuação extraordinária de Jessie Buckley, o filme funciona ao mesmo tempo como um drama familiar delicado, cheio de afeto, e como uma reflexão sobre como a experiência pessoal, o luto e a saudade atravessam o tempo e se transformam em expressão artística. Zhao segue amadurecendo dentro do cinema dramático e, a cada novo trabalho, parece fazer ainda mais maravilhas. Toda grande tragédia nasce fora do palco. Hamnet prova isso.

NOTA: 9

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