O Agente Secreto é, antes de qualquer coisa, um filme sobre memória coletiva e a urgência de preservar aquilo que insistem em apagar (ou ser apagado). Kleber Mendonça Filho volta ao jogo com uma obra que, ao mesmo tempo que resgata a história, também se diverte celebrando a cultura nordestina com referências deliciosas aos clássicos do cinema. Não precisa de carimbo de Oscar para ser tratado como obra-prima; a força dele está justamente em lembrar ao mundo que o olhar brasileiro, nordestino inclusive, tem muito a dizer e não entrou na sala de cinema para fazer pirraça.
O thriller político de quase 3 horas de duração – dividido em 3 capítulos – se ancora no período da ditadura militar no país, tal como Ainda Estou Aqui, só que sem didatismos. Com sutilezas de quem conhece o terreno, o filme nos coloca dentro da experiência: dá para sentir o calor incômodo, a purpurina que insiste na pele e o carnaval que resiste mesmo quando a liberdade está em frangalhos. No fim das contas, seu brilhantismo está na autenticidade desse Brasil com “s”. Cada segundo pulsa Brasil, mas com tamanha precisão cinematográfica que a conexão com públicos estrangeiros acontece naturalmente. Afinal, quando a arte é boa de verdade, todo mundo entende o recado.
Índice
Os acertos e erros de O Agente Secreto
É evidente que o cinema de Kleber sempre atravessa a política, e este não foge à regra. Há ecos claros de Retratos Fantasmas, assim como a reafirmação de que O Agente Secreto é sim um filme de esquerda sem qualquer vergonha disso. Ainda assim, reduzir a obra a essa etiqueta seria desonesto.
O filme sustenta um discurso potente sobre as marcas que a ditadura deixou e sobre o valor inegociável de pesquisar e preservar nossa história, para que ninguém se ache brilhante o bastante para tentar repeti-la. Se em Bacurau a crítica mirava o olhar xenófobo vindo de fora, aqui o alvo é ainda mais íntimo: o preconceito que o Brasil, especialmente o Sudeste, insiste em alimentar contra o próprio Nordeste.
Há um emaranhado saboroso de histórias e memórias recifenses costuradas a esse roteiro enxuto, que Kleber conduz com a confiança de quem conhece cada beco da própria cidade. O mistério cresce, instiga, diverte e nunca escorrega para o excesso. A atmosfera quente, suada, quase esmagadora, se soma aos figurinos e cenários de cores vibrantes estourando na tela, criando um contraste pulsante – quase erótico. É vida demais brotando diante dos nossos olhos, justo em um momento histórico que tentou apagá-la.

Com um elenco numeroso e uma narrativa que abraça a densidade sem perder o senso de humor, o filme constrói um suspense imersivo que às vezes parece ter mais assunto do que minutos disponíveis, ainda que tudo esteja ali por um motivo muito claro. Em meio a essa profusão de ideias, fica visível a paixão de Kleber pelo ato de filmar e pela história do cinema mundial.
Existe um charme muito especial nessa colcha de referências, muitas delas tão específicas que talvez só quem viveu os anos 70 ou conhece Recife de perto vai captar completamente. Kleber não faz questão de pegar o espectador pela mão. O filme segue confiante, sem pausas didáticas, e espera que você acompanhe o passo e se divirta na história desse “agente secreto” involuntário.
Mesmo assim, o diretor não abre mão do entretenimento pipoca. Os diálogos são fantásticos, cheios de alegria e ironia, e o roteiro encontra espaço para inserir acontecimentos reais que escancaram o país que ainda somos, como a referência ao caso do menino Miguel, vítima da negligência criminosa da patroa da mãe. O que poderia virar apenas um exercício cinéfilo de citações vazias, cresce com propósito. Tem Spielberg aqui, tem A Profecia, tem lendas urbanas e tem memórias de uma década moldando a paranoia coletiva. Tudo serve ao filme e ao olhar de quem o conduz.

E para fazer essa engrenagem complexa operar com precisão, Kleber conta com Wagner Moura no centro de tudo, em um papel que parece ter sido encomendado sob medida para sua persona. Depois de quase 12 anos longe de um longa-metragem em língua portuguesa, o ator que conquistou Hollywood retorna ao cinema brasileiro, e especialmente ao cinema nordestino, com a mesma energia arrebatadora que marcou sua passagem por Tropa de Elite.
Moura é praticamente um fenômeno meteorológico inexplicável: quando surge, muda o clima da cena. Sua atuação aqui é contida, cheia de camadas e de pequenas tempestades no olhar castanho que tem (como bem dizia Renato Russo). É, com folga, uma das grandes performances do ano do cinema mundial e talvez a mais relevante (e premiada!) de sua trajetória.
Mesmo assim, quem pega o bastão e sai correndo com ele em vários momentos é dona Tânia Maria (Bacurau), no papel da líder da vila que abriga os “refugiados” da ditadura. Ela dá o tom irônico, espirituoso e humano, com sua naturalidade e improviso, que equilibra a narrativa quando o peso do tema ameaça nos esmagar.

E vale deixar um destaque carinhoso para Alice Carvalho (Cangaço Novo). Sua participação é breve, mas capaz de provocar aquele nó na garganta difícil de ignorar. Há uma cena específica com ela que já nasce antológica. É o tipo de momento que lembra por que a gente ama tanto o cinema afiado como uma navalha de Kleber Mendoça Filho.
Veredito
O Agente Secreto é um espetáculo visual, de narrativa afiada e muita inteligência emocional. Kleber Mendonça Filho entrega um filme que comunica uma mensagem poderosa sem jamais esquecer que cinema também é entretenimento daqueles que fazem plateias inteiras se inclinarem para frente na poltrona, como em Tubarão. Não é só o ponto alto do nosso cinema neste ano; tem tudo para figurar entre as obras mais significativas da última década do cinema mundial. Se a Academia quiser aplaudir, ótimo. Se não quiser, problema dela.
Existem pequenas derrapadas no caminho, uma duração que poderia ser mais enxuta e tanta história para abarcar que às vezes o filme parece tropeçar na própria ambição. Só que o brilho do roteiro, a direção cheia de pulso e esse elenco absurdamente talentoso colocam qualquer tropeço no bolso. O cinema nordestino aqui mostra, com a força de um trovão, que nunca foi “regional” coisa nenhuma. É universal, urgente e irresistível.
Wagner Moura entrega um trabalho digno de consagração e a obra como um todo sai da tela com a energia de um carnaval que insiste em pulsar mesmo quando o país tenta esquecer suas memórias. Tem humor, tem terror, tem verdade. Se pintar um Oscar no caminho, maravilhoso. Se forem dois, já pode reservar o frevo para a festa. De fato, absolute cinema!
NOTA: 9/10
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