Crítica | Anora – E quem é Anora, afinal?

Vencedor da Palma de Ouro em Cannes sob a presidência da diretora Greta Gerwig sobre o júri, faz todo sentido que Anora, nova desventura de Sean Baker tenha sido agraciada com o prêmio: Gerwig despontou no cinema como musa do mumblecore, um subgênero do cinema alternativo que priorizava as atuações naturalísticas, os diálogos improvisados e o baixíssimo custo de orçamento como estímulo para o encontro de soluções criativas.

Desde Tangerine, Baker empresta muito das heranças do mumblecore, contratando não-atores em busca da veracidade de suas atuações, filmando a céu aberto, sem a proteção de grandes estúdios, e aproveitando o máximo que pode de suas locações, onde muitas vezes esses mesmos não-atores contribuem na construção de cenas, lapidamento do roteiro, etc.

Neste caminho, Baker também empresta muito do neo-realismo italiano dos anos 40 que marcou filmes como Ladrões de Bicicleta e Roma, Cidade Aberta, saindo do cenário do pós-guerra e adentrando nas raízes da problemática do sonho americano, seja acompanhando duas prostitutas transexuais na véspera de Natal em Tangerina, no dia-a-dia de crianças que vivem nos arredores do Disney World em Projeto Flórida ou no retorno à cidade natal de um ex-ator pornô em Red Rocket. O interesse de Baker está nos marginalizados, nos que vivem à margem, nos invisíveis. Daí a estranheza de que, apesar de trazer todas as características que marcam seu cinema, Anora não pareça uma filha autêntica de Baker, mas uma mera emulação de sua câmera empática com personagens lutando para sobreviver.

Os acertos e erros de Anora

Claro, nada mais característico de seu cinema do que construir e desconstruir um “conto de fadas” sobre uma dançarina de boate que se casa com um jovem russo milionário e que, após algumas sequências que parecem dizer que Anora encontrou sua felicidade, se desfazem em frangalhos ao longo de uma hora inteira diante de nossos olhos. Red Rocket já fazia isso com a ambiguidade de seu protagonista masculino, quase como se Baker fizesse destes dois filmes opostos complementares.

E não somente pelas diferenças de gênero que devem e merecem ser pautadas, mas por como a indústria tratou ambos os filmes. Red Rocket basicamente foi boicotado de premiações e dentro de seu circuito, enquanto Anora se transformou na maior bilheteria de Baker até o momento, custando 6 milhões (seu maior orçamento também) e arrecadando 32 milhões nas bilheterias.

Estranho então que, em seu miolo, Baker não se interesse nem um pouco pela personagem-título que carrega sua narrativa. Dentro de todo esse grande ato de construção (o dia-a-dia de Anora na boate) e desconstrução (a correria atrás do jovem rico que se casou com Anora), o filme jamais nos diz quem, de fato, é aquela menina.

Ok, entendemos a proposta de recorte desse momento específico da vida da protagonista, mas ao negar até mesmo um passado para ela, um background, uma contextualização de como e por que Anora chegou até ali, o cineasta e roteirista esvazia as próprias provocações de sua comédia dramática que encontra seu ponto alto em todo o ato da mansão, e se banaliza rápido demais quando a correria do segundo ato começa (algo meio Depois de Horas, do Scorsese).

Chega ao ponto de parecer que o filme só pretende ser malvadinho com sua protagonista mesmo – sem muitas nuances, Anora é amordaçada, humilhada, perseguida, obrigada a tomar diversas atitudes que não quer, briga, esperneia, nunca é ouvida ou respeitada, e por aí vai. O caos impera sobre Anora, mas agora muito mais organizado pelas lentes de Baker para que esse martírio justifique o apego constante de Anora à fantasia da qual insistem lhe tomar. E estranhamente, esse caos parece encenado, seguro, límpido, algo inédito dentro do cinema de Baker, até então.

Dentro da correria, tantos personagens passam por cima de Anora que o roteiro desiste dela, que se torna apenas mais uma caminhando na noite atrás de sua busca. Não se sabe o que fazer com ela dentro do segundo ato, e mesmo quando o noivo de Ani (apelido de Anora) é encontrado, o roteiro nega a subjetividade da protagonista e se escora em tantos outros ao seu redor, minando sua presença enquanto personagem-título. É um filme sobre o martírio de Anora, não sobre ela.

Mikey Madison é quem empresta para a personagem a vivacidade que o roteiro lhe nega. A fantasia e a gritaria se justificam através da performance de Madison, autêntica em cena de forma comovente, apesar da limitação de nuances. Mas nem ela é capaz de impedir que Mark Edelstein, como o filho mimado, e Yuriy Borisov, principalmente, quase lhe roubem a cena quando estão presentes, e este último, em especial, surpreende bastante com sua presença gentil e cuidadora em contraste ao seu físico ameaçador e imponente, é um belo trabalho de composição.

Dentro desse passeio de cenários e locações, ao menos Baker mantém em alta o seu apuro à fotografia, cuja iluminação se adequa muito bem aos diversos ambientes e trabalha muito bem a textura do plano – apesar de límpido, Anora ainda é “sujo” visualmente, o que entra em total acordo com a distorção de conto de fadas que Baker busca. O humor do roteirista como válvula de escape também encontra grandes momentos, a já mencionada cena da mansão é um espetáculo de descontroles inesperados que arranca algumas risadas incrédulas bem espontâneas.

Veredito

Anora é um Baker sem muito tato. Desta vez, lhe falta atenção aos detalhes daquele mundo e como ele carrega seus personagens, especialmente sua protagonista. Deus que me perdoe, porque todo cineasta deveria ter um orçamento decente em suas mãos para entregar seus projetos, mas parece que o cinema de Sean Baker realmente depende dos desafios em fazer muito com pouco. Tomara que seu próximo filme me mostre que estou enganado.

Nota: 5/10

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