Crítica | Propriedade – Representação crua e potente da polaridade brasileira

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Os ânimos estão em chamas! O cinema brasileiro possui um jeitinho singular de tocar nas feridas expostas da sociedade sem perder nem por um minuto a imersão de entretenimento que os filmes tanto necessitam para sobreviver e marcar. No caso do filme pernambucano Propriedade, do diretor Daniel Bandeira, essa crítica social assume níveis estratosféricos ao explorar uma situação bastante singular e inusitada, ainda que soe como uma espécie de Bacurau para a extrema-direita.

Quer dizer, ao mergulhar na polaridade em que o Brasil se encontra atualmente, o filme acerta no nível elevado de tensão do começo ao fim – como um excelente thriller/terror psicológico – mas é de se observar que a voz aqui está dada não ao povo, mas sim aos privilegiados que usam e abusam de seus privilégios para se proteger das violências brasileiras.

A trama e o elenco de Propriedade

Antes que soe intencional, é visível que essa não foi a intenção central de Bandeira, que também escreve o roteiro de forma engenhosa, de dar palco para um Brasil mesquinho e majoritariamente branco, afinal, o filme foi rodado e idealizado lá em 2018, muito antes do caos político extremista que passamos, mas sabemos que a arte muitas vezes assume caminhos complexos e, por mais que tenha nuances de certo e errado, por vezes vemos os oprimidos colocados como violentos e agressores, mesmo que isso deixe exposto as raízes da violência brasileira e os conflitos do campo, longe do sistema das cidades.

De qualquer forma, Propriedade possui muito a dizer e deve atingir classes sociais distintas de diferentes formas. É complexo, isso só deixa a trama ainda mais rica e criativa, mas incomoda até demais. Talvez agora, quase em 2024, após 4 anos de um governo absurdamente negligente e toda essa divisão da sociedade, o longa possa soar um tanto quanto cafona ou mesmo feito para um público que vai absorvê-lo pelas ideias errôneas.

Na trama, para se proteger de uma revolta dos trabalhadores da fazenda de sua família, uma reclusa estilista se enclausura em seu carro blindado. Separados por uma camada impenetrável de vidro, dois universos estão prestes a colidir, ou seja, o caos está armado para um conflito que ultrapassa o limite das telas e nos faz refletir profundamente sobre de que lado estamos nessa guerra, se é que há algum lado “certo” no fim das contas.

Malu Galli brilha feito sol na que certamente é a melhor performance da sua carreira. Com poucas palavras e olhares intensos, a estrela de Amor de Mãe mostra que sabe muito bem trabalhar em gêneros e carrega o filme nas costas, atuação digna de prêmios.

Muito do filme é sobre traumas mal resolvidos, falta de diálogo e conflitos sociais entre as classes altas e baixas do Brasil. Sem buscar solução viável, a trama se desenrola num contexto tenso e imprevisível.

Os problemas sistemáticos do Brasil se materializam em forma de dilemas sociais que nos deixam angustiados do começo ao fim, mérito, claro, da condução intrigante do Daniel Bandeira e sua visão aguçada para criar um thriller com qualidade de filme gringo nesse estilo home invasion, senão um dos primeiros, mas talvez o melhor nesse subgênero que o cinema nacional já teve.

A narrativa é imersiva, carregada de suspense e boas soluções para as inúmeras possibilidades que surgem de alguém preso dentro de um carro blindado de última geração.

O tempo todo a trama brinca com o fato de quem é o vilão. Os trabalhadores revoltados e violentos ou a mulher branca, vinda de uma família privilegiada, que sugou até a última gota daquelas pessoas e agora precisa lidar com as consequências, digamos, desagradáveis.

Outro ponto que merece atenção é como o filme cresce a sensação de perigo a ponto de nos deixar presos na poltrona do meio para o final. Fora as intenções alcançadas que soam infelizes num contexto pós-Bolsonaro, como filme, em todos os aspectos técnicos – incluindo montagem e trilha sonora -, o longa é bastante eficiente e divertido de se assistir, com uma boa dose inesperada de sangue.

Veredito

Angustiante, desconfortável e feito para incomodar, o filme pernambucano Propriedade brilha na construção de suspense de tirar o fôlego, provando mais uma vez que o cinema nacional sabe muito bem fazer ótimos filmes de horror, porém, sua trama idealizada antes da Era Bolsonaro, ainda que flerte com a divisão atual do país, soa um tanto quanto perigosa e cafona nos tempos atuais. Ainda que não tenha sido claramente a visão do diretor e roteirista Daniel Bandeira, afinal, como um filme atinge cada pessoa não deveria ser uma preocupação do realizador.

Propriedade reflete destemidamente sobre a barbárie humana e as raízes da violência brasileira sem perder aquele gostinho envolvente de entretenimento que faz valer o ingresso. No fim, nos perguntamos quem é o grande vilão dessa história e mais que isso, de que lado você quer estar uma vez que todos são perigosos. Não dá para jogar pra debaixo do tapete que, cedo ou tarde, essa bomba vai explodir e o filme antecipa a radiação. O mais perto que a extrema-direita terá de ter um Bacurau para chamar de seu, independente das boas intenções de um roteiro pensado para outra realidade.

Nota: 8/10

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