Interessante ver a capacidade de alguns cineastas em transformar uma pedra bruta e suja de lama em ouro. Diversos fatores fazem O Homem do Norte (The Northman) ser um grande filme, no entanto, é a percepção de que há uma mente inteligentíssima e criativa pensando por trás da obra que a torna tão singular dentro de seu nicho, afinal, trata-se de mais um filme sobre a Era Viking, cuja jornada do herói é bastante simples e linear. Mas Robert Eggers dá seu nome e dá um sabor a mais com sua bagagem do cinema de horror, mostrando que, com baixo ou grande orçamento, consegue transformar qualquer história comum em uma lenda.
Mas fazer nascer um clássico não é tarefa fácil, especialmente em épocas de blockbusters grandiosos. Por mais indie e autoral que você seja, navegar na maré é essencial para se manter relevante e sábios são os diretores que entram na onda, mesmo batendo o pé para ter liberdade dentro dos grandes estúdios. Uma luta difícil, árdua e com poucos vitoriosos, quase uma arena Viking para ser mais exato.
E convenhamos, este é apenas o terceiro filme da carreira. Em pouco mais de 7 anos, Eggers se provou ser uma revolução e já comandou três obras-primas impecáveis. Duas delas de terror – sendo a primeira, A Bruxa, considerada por muitos o começo de um movimento contemporâneo dentro do gênero. É compreensível que depois desse passeio pelo cinema livre, criativo e atmosférico, agora seja o momento de vender sua alma para um grande estúdio e fazer um épico de larga escala. Claro, com sua assinatura no canto da página.
A trama e o elenco
E se tem algo que Eggers faz e faz bem, é trabalhar a ambientação, o estudo dos personagens e a atmosfera intensa por trás da trama. No caso de O Homem do Norte, a sensação de perigo é tão crescente, que é como assistir O Casamento Vermelho de Game of Thrones por duas horas. O trabalho impecável de som – que, inclusive, foi destaque de seu filme anterior, O Farol – transforma as frias e isoladas paisagens do Atlântico Norte em um cenário assustador, sombrio e intenso, combinado com a brutalidade e selvageria da época.
O diretor cria um filme de terror sem que tenha as conveniências do gênero, mas o mergulho é mesmo no drama familiar, na jornada de um menino príncipe que vê seu pai, atual Rei do Norte, ser morto a sangue frio por seu tio. E não, não estamos falando de O Rei Leão, ainda que o aspecto teatral e shakespeariano estejam fortemente presentes nessa aventura.
Após jurar vingança ao familiar, Amleth (vivido por um surpreendente Alexander Skarsgård) foge do lugar, cresce como um viking e retorna ao Norte para colocar seu plano sanguinário em prática. Nesse meio tempo, ganha músculos (e como ganha!), força, habilidades especiais e transforma-se praticamente em um super-herói, um Thor humano. Se bem que, por ser a vingança em pessoa, está mais para o Batman.
Desse ponto, o brutamontes loiro mostra ter capacidade de empatia – ainda que não faça nada diante do genocídio de crianças pelas mãos de seus amigos – e até se apaixona pela bela e mística Olga (Anya Taylor-Joy), quando sua aventura de volta para casa realmente começa. O roteiro é linear, simples e, apesar de ser uma trama longa e repleta de personagens secundários, sua narrativa é bastante clara e objetiva. A progressão da história impede que o espectador caia no tédio, ainda que o desenvolvimento leve mais tempo que o necessário, um mal do cinema contemporâneo.
E para segurar essa estrutura, Skarsgård brilha em seu provável melhor papel da carreira até então. O astro mostra que ter um bom diretor para conduzir faz toda a diferença. Amleth tem ares de inocência e doçura, mas guarda dentro de si uma violência poderosa, quase que uma força da natureza, um vulcão prestes a explodir. Seu destino é puramente se vingar e, para viver uma vida de rancor e ódio, enfrenta os desafios sem medo, sem pudor e sem piedade com os outros homens terríveis do lugar.
Obviamente, pelo contexto da época e selvageria do ser humano quando se trata de dominar povos “inferiores”, o longa explora sutilmente temas como masculinidade tóxica para mostrar que todos nós viemos de uma origem sangrenta, marcada pela violência, soberania e acúmulo de poder dos homens. Apesar de não ser sobre ela, Anya Taylor-Joy encontra sua voz no meio desse ambiente misógino e sua personagem, vista como bruxa, solta algumas boas reflexões no ar, assim como Nicole Kidman, que vive a mãe do protagonista e que mostra outra faceta das mulheres da época.
A direção
Claro que para sustentar um filme tão longo, apenas uma boa direção não basta. O visual de tirar o fôlego, as nuances de fantasia e horror e o banho de sangue em cada sequência de batalha deixam o roteiro de O Homem do Norte ainda mais preenchido, interessante e, por consequência, empolgante, uma vez que já sabemos para onde aquela trama vai e que as reviravoltas são poucas e pontuais ao longo da história. Mesmo comercial em excesso, com lutas em grande escala e cenários com uso de computação gráfica, o filme ainda mantém a raiz artística de Robert Eggers, especialmente nas viagens malucas por sonhos, profecias e delírios dos personagens.
As sequências de ação são excelentes, realizadas com uma câmera voraz que navega pelos cenários e passeia pelo caos dos conflitos, assim como o trabalho apaixonado da direção de fotografia (um pouco escura, mas tá valendo!), do som e do design de produção. Tudo aqui grita cinema em sua forma mais pura e passional, mostrando a mente por trás das escolhas visuais. O longa é corajoso, engenhoso e se sai bem em não tentar reinventar a roda.
Conclusão
A intensa história de vingança de O Homem do Norte pelo olhar visionário e potente de Robert Eggers – se provando um dos melhores cineastas da sua geração – mescla blockbuster de ação com cinema de arte em uma trama brutal, envolvente e magistral. Nesse espetáculo de sangue, o diretor vai além do tradicional para entregar um verdadeiro épico moderno, que deve se tornar o melhor filme do ano pra muita gente.
Apesar disso, não espere muito do roteiro de O Homem do Norte, uma vez que segue a típica e até clichê jornada do herói sem tirar nem pôr, mas os elementos de horror, bruxaria, as sequências de ação (repletas de tripas e lama) e a performance dominante de Alexander Skarsgård são os temperos que dão a essa omelete um gostinho a mais do que apenas outro filme viking sem cérebro. Felizmente, a mente pensante por trás sabe que, para se criar um clássico do cinema, não é necessário reinventar o gênero do zero, apenas fazer algo corajoso, forte e divertido dentro do que já tem.
É a obra menos marcante de Eggers depois de duas produções visionárias? Talvez. O nível era altíssimo para ser batido. Mas isso não significa decadência, muito pelo contrário, significa que as demandas do cinema é que estão cada vez menos artísticas e mais comerciais. Ainda assim, o diretor usa sua magia para transformar qualquer orçamento em uma obra passional, dedicada e carregada de simbolismos. Nessa batalha Viking entre arte e entretenimento, vence aquele que saber fazer os dois. E ainda entregar um filme tão bom assim.
NOTA: 9/10
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