Crítica | A Assistente – Estudo sutil e preciso sobre o abuso e o assédio no ambiente de trabalho

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Poucos acontecimentos recentes impactaram tanto Hollywood como o movimento “Me Too” em 2017. Toda a campanha de denúncias e luta contra o assédio e o abuso sexual na indústria cinematográfica estadunidense revelou o lado sujo e misógino do idealizado ambiente hollywoodiano. E, por mais que o quadro ainda tenha muito a melhorar, o movimento já possibilitou muitas mudanças, tanto nas relações por trás dos bastidores quanto no tipo de história que ganha espaço para ser contada. A existência de um filme como “A Assistente“, disponível no Amazon Prime Video, já é um efeito direto – e positivo – do “Me Too” em Hollywood.

O longa é o primeiro trabalho de ficção da cineasta Kitty Green, que até então vinha construindo uma carreira exclusivamente documental. Sua singela narrativa acompanha um dia na vida de Jane, uma aspirante à produtora que trabalha como assistente de um influente produtor de cinema. Ao longo de sua exaustiva rotina, a jovem vai aos poucos percebendo os rastros de abuso praticados pelo seu chefe no local de trabalho, e toda a realidade perversa que ronda e assegura esse comportamento do figurão hollywoodiano, cujo rosto nós não vemos em nenhum momento do filme.

Essa opção por não entregar ao espectador o nome nem a aparência do produtor é uma das muitas escolhas inteligentes que Green faz na execução do longa. Não personificar o “antagonista” faz com que a figura do chefe abusivo possa pertencer a qualquer um. Não é uma questão limitada a um só profissional da indústria. O assédio não é um problema só de Harvey Weinstein ou de algum dos outros nomes denunciados em 2016. É algo muito maior; a figura desse tipo de predador com poder no cenário fílmico é muito mais comum do que o mundo acreditava ser. Ao não criar uma imagem para esse vilão, o alvo do filme passa a ser cada um desses assediadores que assolam a indústria.

Nesse sentido, o projeto de Green é necessariamente um filme-denúncia, mas um que nunca se deixa ser limitado por isso. Outra sábia decisão da diretora está em nunca permitir que esse elemento de denúncia interrompa ou embaraceembaraçe a história pontual que ela está contando. Ela entende que o poder da sua mensagem é ainda maior quando é passado através da narrativa sobre Jane, e não apesar dela. É em buscar antes o foco na experiência pessoal dessa personagem que Green encontra a podridão e a misoginia do ambiente.

Para isso, ela aproveita os talentos de sua atriz principal, a fascinante Julia Garner. A atriz, aclamada por seus trabalhos na TV, segura um papel dos mais desafiadores: além de estar presente em todas as cenas do filme, sua personagem pouco tem liberdade para falar ou mudar seu semblante. E mesmo assim Garner entrega uma performance graciosa e precisa, com uma atenção impressionante para cada detalhe da fisicalidade da protagonista. É um trabalho que ilustra bem a inexpressividade que o silenciamento e a opressão a obrigam a ter, mas que, mesmo assim, encontra lugar para exprimir angústia e fragilidade através de elementos quase “invisíveis”, como a cadência de sua voz ou o movimento de seus olhos. A delicadeza da atuação dialoga com toda a atmosfera do filme.

Assim como o trabalho de Garner, toda a composição do longa segue regras de sutileza e severidade parecidas. Green filma os espaços com uma rigidez que transforma um simples escritório em um espaço sufocante. É por meio da simetria dos planos médios e da aspereza do design de som que Green constrói esse ambiente assustador, todo um ecossistema que faz de tudo para calar as figuras femininas e manter o ciclo abusivo. Em certos momentos, sua abordagem lembra, por exemplo, o estilo de um filme de terror psicológico. E por que não compreender essa história como uma de horror, no fim das contas?

A conclusão “A Assistente” é, de certa forma, bastante frustrante. O roteiro se encerra mais ou menos onde você espera que ele termine, mas, por mais que faça sentido com o resto da trama, é natural sentir falta de um final um pouquinho mais catártico. É muito melhor, porém, o final reservado e relativamente melancólico pelo qual o filme opta,  do que uma reviravolta grandiosa e artificial que destoasse de tudo o que o longa se propõe a ser. Afinal, o objetivo principal de “A Assistente”  nunca é recompensar o público, e sim descortinar diante dele a realidade atroz e opressiva que existe por detrás de um ambiente aparentemente banal – e esse objetivo poucas obras conseguem cumprir tão bem quanto o longa de Kitty Green.

Nota: 8/10

Texto enviado por Felipe Galeno

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