Crítica | Pinóquio – Live-action na forma que a Disney não consegue realizar

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Existem muitas coisas que a Disney não pode fazer, e uma delas é contar uma lenda da maneira obscura, realista e desconfortante como ela foi concebida. Quando o véu da superficialidade é retirado de um conto clássico, como o do boneco de madeira que ganha vida, há muitas camadas para serem exploradas e é exatamente isso que Pinóquio (Pinocchio) faz nesse live-action italiano do famoso personagem da literatura, que surgiu por volta de 1883 e nunca mais saiu do imaginário da cultura pop, especialmente após as animações inocentes do estúdio do Mickey. Porém, não se engane: essa adaptação segue fielmente a lenda original e isso inclui explorar todas as bizarrices e estranhezas que cercam a fantasia, unindo algo como o senso de humor sombrio de Tim Burton, com a estética de monstros de Guillermo del Toro. E o melhor: trazendo Pinóquio de volta para sua terra natal e lhe dando a oportunidade de ter uma história decente e sem as amarras da classificação indicativa.

A trama e o elenco

O que o diretor Matteo Garrone (dos ótimos Dogman e O Conto dos Contos) faz é mesclar, com muita precisão e maestria, a fantasia curiosa da história original, com elementos do cinema neorrealista italiano, em um filme completamente fora da caixinha para os padrões comerciais, mas que ganha vida e floresce por conta do seu teor artístico, presente até mesmo nos mínimos detalhes. A trama segue a história que já somos familiarizados: um velho carpinteiro solitário cria uma marionete e vê algo mágico acontecer – o boneco ganha vida e se transforma em seu filho. No entanto, enquanto Pinóquio precisa aprender a lidar com os humanos perversos, ele anda de desventura em desventura sendo enganado, raptado e perseguido por ladrões, num mundo fantástico, repleto de criaturas estranhas, locais incríveis e com o diferencial de ter Gepetto interpretado pelo vencedor do Oscar, Roberto Benigni (A Vida é Bela). Nessa promessa de trazer mais realismo e ousadia, já que se desenvolve no mundo corrupto e desigual de uma Itália cercada de traumas, a trama colide com a fantasia e explora o melhor desses dois universos, utilizando metáforas para expressar o sentimento de desmoronamento social do país.

Além do trabalho impecável de Benigni, o menino Federico Ielapi, que dá vida ao protagonista, é puro encanto e talento. O ator, mesmo carregado de maquiagem e CGI para construir o aspecto de madeira do personagem, consegue se sobressair e conquistar o público com sua doçura. É bom lembrar que Pinóquio é um menino destemido, arteiro e inocente, que possui um bom senso de caráter, algo que a Disney aproveitou bastante e fez dessa característica o grande foco de suas animações, porém, nesta versão, ele é mais do que isso e, em diversos momentos, mostra suas camadas mais densas e seu lado mais, digamos, dark, consequência do mundo assustador em que vive. Aliás, a ambientação é um fenômeno à parte com seus cenários deslumbrantes e personagens esquisitíssimos que cruzam o caminho do menino, incluindo fadas, caracóis gigantes e o tão adorado Grilo Falante, vivido pelo ator Davide Marotta. Definitivamente, todos os personagens que conhecemos estão aqui e são recriados com o excelente trabalho de maquiagem de Mark Coulier, que trabalhou, inclusive, na franquia Harry Potter. Com uma caracterização melhor que a outra, se torna visível o empenho da produção em ser fiel e, ao mesmo tempo, não temer exagerar na bizarrice desse universo peculiar.

A direção

Com todas as engrenagens funcionando perfeitamente, o trabalho do diretor Matteo Garrone é manter o ritmo em alta enquanto a jornada do protagonista se intensifica. Nesse quesito, o filme demora para encontrar sua direção, mas também não perde tempo em tentar explicar, de forma realista, cada um dos elementos fantásticos desse lugar incomum. A madeira apenas ganha vida e é isso, sem mais delongas, o foco da trama é em acompanhar o menino inocente em sua aventura de amadurecimento e, pelo caminho, mostrar lindas paisagens e a direção de arte caprichada que o longa preparou.

Mas claro, há bons momentos de humor e até mesmo ação, assim como mantém presente diversas passagens imprescindíveis da história, mas retratadas por um lado bem mais incisivo do que poderíamos esperar, como, por exemplo, o momento em que mostra Pinóquio sendo enforcado e/ou a transformação do menino em um burro, feita de forma totalmente sinistra e desconfortante de ser assistida. Além de toda essa sensibilidade, Garrone também mostra que sabe explorar as sombras e o escuro para construir ambientes sinistros e usa a fotografia terrosa, bastante incomum, como forma de criar uma textura marcante. É realmente uma condução assertiva, mas há sim problemas no roteiro e, em muitas das vezes, a trama é confusa além do habitual e certamente não deve agradar crianças.

Conclusão

De uma forma que a Disney jamais conseguiria realizar, o live-action italiano Pinóquio esbanja fantasia e estranheza ao ser um conto de fadas deslumbrante, esculpido do lado obscuro e perverso da clássica lenda do boneco de madeira que ganha vida. Além de proporcionar uma aventura imersiva e divertida pelo mundo esquisito da lenda, ainda reserva tempo para explorar uma Itália realista, carregada de corrupção e maldade, que comove através do brilhantismo da direção. Já estava mais do que na hora do amado personagem da literatura ganhar um filme à altura de sua importância na cultura pop mundial. E, felizmente, ganhou.

Detalhe: O idioma original do filme é italiano e ele está chegando ao Brasil dublado em inglês. Definitivamente a dublagem é péssima e tira grande parte da imersão da obra. Distribuidoras, já está na hora de parar de dublar filmes estrangeiros para o inglês, nunca fica bom.

Nota: 9/10

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