Crítica | A Voz Suprema do Blues – Celebração majestosa à cultura negra

A música, por si só, já é um forte elemento cultural que serve nas camadas mais profundas como forma de narrar eventos históricos que transformaram nossa sociedade no que somos hoje. E o blues, entre outros importantes gêneros, existe para remontar narrativas que podem ter sidos apagadas dos livros de história da América, mas que se eternizaram nas canções potentes sobre a agonia da escravidão e as injustiças sociais que a comunidade negra vivenciou no passado. Dentro desse aspecto, como forma de homenagear a icônica mulher que fez seu nome repercutir, ‘A Voz Suprema do Blues’ (Ma Rainey’s Black Bottom), produção da Netflix, mergulha de cabeça na sensibilidade da música e no seu poder transformador, mas se destaca mesmo é pelas performances sublimes do elenco.

A trama e o elenco

O longa se inspira na figura real – e de certa forma lendária – da cantora Ma Rainey, conhecida como a “mãe do blues”, para narrar um conto sobre a exploração da cultura negra na mão de produtores brancos. A trama acompanha a reunião de alguns músicos na quente Chicago de 1927 e a gravação de uma canção que eternizaria o blues. Nesse contexto, o roteiro remonta uma narrativa teatral para explorar temas reflexivos e extrai até a última gota dos talentosos atores. Viola Davis (How To Get Away With Murder), por sua vez, dispensa apresentações. Quando está em cena rouba todo o oxigênio do público. Sua performance é impactante, assim como a construção de sua personagem, uma mulher forte, mandona e que não abaixa a cabeça para ninguém, sabendo valorizar seu talento absurdo com a voz e sua importância para a música da época.

A protagonista tem presença marcante, mas é Chadwick Boseman (Pantera Negra) que emana luz e consagra seu talento e legado como um dos melhores atores de sua geração, afinal, esse é seu último trabalho e, sem dúvida, sua melhor performance até aqui. Boseman encerra sua carreira com um personagem traumatizado, complexo e repleto de nuances sensíveis. A cortina de sua vida se fecha, mas o que agregou para a indústria do cinema sem dúvida irá repercutir. Interessante ser um filme sobre legado e ter o último trabalho do ator, que consegue destaque na trama e rouba a cena inúmeras vezes. Ao lado de Viola, cria uma áurea de carisma que preenche as lacunas do roteiro e ofusca alguns problemas de ritmo. Ou seja, o elenco deslumbrante, somado à direção de arte e figurino estonteantes, estabelecem a atmosfera ideal para que um drama de época desse patamar possa conquistar o espectador.

A direção

O enredo de A Voz Suprema do Blues, que acompanha o ensaio da banda, também desacelera diversas vezes para dar espaço à monólogos reflexivos sobre diversos temas cruciais. Esse modelo aproxima o filme de uma peça teatral (que, inclusive, serviu de base), mas decepciona por explorar superficialmente as canções e ter pouquíssimos números musicais. Ainda que o filme seja sobre uma figura lendária, o roteiro não faz um bom trabalho de explicar, para gerações mais novas, como Ma Rainey atingiu o patamar de sucesso e como seu talento atravessou as barreiras da segregação nos Estados Unidos da década de 1930.

Os personagens são vagos e sabemos pouco sobre como chegaram até aquele ponto da história. Além disso, nessa mesma época estava sendo lançado ‘O Cantor de Jazz’, considerado o primeiro filme sonoro do cinema. Teria sido interessante ver o roteiro explorar essa mudança cultural nos EUA e como a música alterou, para sempre, a percepção da sociedade. O trabalho de George C. Wolfe (Noites de Tormenta) na direção é impecável na forma em como se conecta com o elenco, mas desliza no ritmo. No entanto, sabe dosar com bastante maestria o humor e o drama extraído de cada cena. O ritmo é apressado e o filme é curto para os padrões hollywoodianos, ou seja, cada momento conta e o roteiro não extrapola, mas deixa um gostinho de que poderia ter sido mais profundo em certos aspectos. Ainda na qualidade, o trabalho de maquiagem, por sua vez, chama atenção pela precisão e minuciosidade.

Conclusão

Através disso, ‘A Voz Suprema do Blues’ não é apenas uma celebração majestosa ao legado da música, mas também uma homenagem oportuna à cultura negra e ao talento estonteante de Chadwick Boseman, que certamente deve levar seu primeiro Oscar, infelizmente, póstumo. O elenco absurdo ofusca os pequenos deslizes do roteiro e do ritmo apressado em como a trama se desenvolve. Ainda assim, segue firme e forte como um dos melhores filmes da temporada e um manual potente e essencial de como funciona o racismo estrutural e como injustiças sociais apagam as raízes da nossa cultura.

Nota: 9

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