Se terapia tivesse virado tendência mais cedo, provavelmente metade dos artistas nem teria existido. Da dor nascem grandes canções, da tragédia vêm os filmes que agarram a gente pelo colarinho. Já do ego surgem aquelas cinebiografias grandiosas que juram que seu protagonista é um espetáculo, mesmo quando o brilho não é tão forte assim.
Bruce Springsteen vem tentando há algum tempo transformar sua trajetória de astro do rock em narrativa de cinema. Ele foi figura importante dentro de um movimento contracultural nos Estados Unidos, isso ninguém discute, mas seu caminho até a fama não chega exatamente a pedir uma versão IMAX com som estourando e câmera nas alturas.
Springsteen: Salve-me do Desconhecido aposta em um drama mais introspectivo, que acompanha o processo criativo do músico com toda a reverência possível. O problema é que falta conflito. Falta aresta. Falta aquela fagulha de caos que faz a gente acreditar que ali houve luta de verdade.
A história, baseada em fatos, vende dificuldade com tanta convicção que quase convence. Quase. Springsteen continua sendo um storyteller irresistível, alguém que sabe como poucos moldar a própria lenda. Só que o filme, em contrapartida, escorrega para a superfície, sem mergulhar de fato em nada. Raso nível poça d’água.
Índice
Os acertos e erros de Springsteen: Salve-me do Desconhecido

Para começo de conversa, assim como tantos projetos recentes fabricados em laboratório para seduzir os votantes do Oscar, o longa também parece carregar uma segunda missão: transformar Jeremy Allen White (O Urso) em estrela definitiva do cinema. O ator entrega tudo no que pode, corpo e alma em modo dedicado, só que o filme insiste em deixá-lo preso ao mínimo, como se tivesse medo de permitir que ele ultrapassasse o palco.
Springsteen: Salve-me do Desconhecido não se posiciona como a jornada de um homem atormentado em busca de reconciliação com seu passado, nos moldes de Better Man – A História de Robbie Williams ou, de forma ainda mais evidente, Um Completo Desconhecido, obra sobre Bob Dylan que parece ter servido de molde para este aqui. A produção até flerta com daddy issues e tenta espremer alguma tragédia paterna para temperar a narrativa, porém o centro de tudo é, obviamente, a depressão.
Curioso que, mesmo sendo esse o âmago emocional do protagonista, o roteiro pisa em ovos o tempo todo. Circula a escuridão, mostra a sombra, mas jamais ousa nomeá-la. A palavra “depressão” parece proibida no set, como se reconhecê-la fosse colocar o filme diante de um abismo mais complexo do que está disposto a encarar. Quase que covarde demais para aceitar a dor de seu protagonista e suas fragilidades humanas.
O filme constrói uma narrativa carregada, apostando na tensão entre a ambição artística de Springsteen, seu ego generoso e a tentativa constante de extrair drama de um passado que talvez não renda tanto assim. Quando se supera essa carência de conflitos, a história até consegue engrenar uma jornada minimamente envolvente, muito graças ao trabalho de Allen White, que carrega melancolia no olhar como um fardo impossível de largar.

Stephen Graham (Adolescência), como o pai alcoólatra e mergulhado na masculinidade tóxica, eleva ainda mais o material sempre que aparece. Springsteen só deseja ser amado e reconhecido por um pai incapaz de demonstrar afeto, porém esse dilema se revela frágil demais para justificar a quantidade de traumas que o roteiro insiste em jogar na mesa. O protagonista é, apesar do talento transbordando e da visão artística ousada, um sujeito não exatamente magnético de acompanhar. O filme não faz esforço para torná-lo mais atraente, ou talvez simplesmente não consiga.
Sob a direção de Scott Cooper, de O Pálido Olho Azul, Springsteen: Salve-me do Desconhecido concentra sua atenção em um trecho da vida e da carreira de Bruce: os dois anos em que ele concebeu aquele que seria seu álbum mais experimental, Nebraska, de 1982. Bruce está a poucos passos de se tornar um ícone absoluto do rock, só que sua fixação é outra. Ele busca criar algo que dialogue com sua infância difícil, com o pai violento, com as feridas que nunca cicatrizaram. A música precisa ser crua, brutal até, e sair direto do peito.
O filme, longe de apostar nos shows como espetáculo cinematográfico, escolhe o caminho da simplicidade. Intimista, básico, terreno. O que poderia ser uma limitação se transforma quase em argumento: não estamos diante de uma cinebiografia pirotécnica sobre um mito do rock, mas do retrato de um compositor imperfeito enfrentando suas próprias rachaduras. O problema é que tudo acontece em um ritmo tão lento e tão monocromático quanto a tristeza que o move. O resultado dá vontade de pedir para acelerar a vitrola só um pouquinho.
Veredito

Springsteen: Salve-me do Desconhecido até tem coração e tem intenção, elementos que já faltaram em filmes muito mais barulhentos sobre grandes nomes da música. A escolha por um recorte intimista e por uma mise-en-scène quase antiespetacular pode até desagradar quem espera solos de guitarra e plateias aos pulos, mas existe algo honesto na tentativa de olhar por dentro do mito e humanizá-lo. O problema é que esse mergulho nunca passa da cintura.
A obra promete profundidade emocional, mas se contenta com a superfície brilhante do gelo. Jeremy Allen White se desdobra para entregar mais do que o roteiro permite e Stephen Graham surge como quem salva o jogo no último minuto, embora ainda falte calor, risco e algum tipo de tempestade narrativa para justificar tanta reverência ao cantor de rock.
No fim das contas, é um filme que quer falar sobre depressão, mas se esconde da própria tristeza. Quer explorar traumas, mas parece sempre pedir desculpas por incomodar. A sensação é de que o longa quer muito ser o trabalho mais vulnerável de Springsteen, só que sem ficar vulnerável de verdade.
A cinebiografia funciona como curiosidade, como recorte histórico e como performance de dois atores em excelente forma, porém carece de pulseira e senha para entrar no clube das grandes histórias do gênero. Quem sabe, em outra vida, com mais conflito e menos polimento, esse mesmo filme teria sido aquele hino catártico que Springsteen tanto deseja cantar? Quem sabe com menos ego?
Nota: 5/10
Clique aqui e compre seu ingresso para o filme
LEIA TAMBÉM:
- Crítica | Hamilton – Potencialidade teatral em tela grande
- Crítica | A Longa Marcha – Tortura é entretenimento em adaptação visceral de Stephen King
- Crítica | Invocação do Mal 4 – O legado dos Warren descansa em paz
Aproveite para nos acompanhar nas redes sociais: Facebook, Twitter, Instagram, Youtube e também no Google News.
Quer receber notícias direto no seu celular? Entre para o nosso canal no WhatsApp ou no canal do Telegram.
Quer comentar filmes e séries com a gente? Entre para o nosso canal no Instagram.