Existe algo de perturbador no ser humano: o fascínio pelo trágico. Quanto maior a tragédia, mais irresistível é a vontade de olhar e, uma vez visto, mais difícil se torna esquecer. A curiosidade, muitas vezes, fala mais alto do que o medo do trauma. Essa atração pelo horror, somada à brutalidade de sua época, deu origem a um dos livros mais instigantes do gênio Stephen King, escrito nos anos 60 e lançado em 1979, ainda marcado por feridas abertas como a Guerra do Vietnã.
Em A Longa Marcha (The Long Walk), um King ainda no início da carreira transformou a tortura em um espetáculo brilhante, dentro de uma narrativa muito simples, porém poderosa, que mais tarde inspiraria tantas outras obras, de forma indireta, em sucessos como Round 6 (Netflix) e, de maneira ainda mais óbvia, na franquia de livros/filmes Jogos Vorazes.
É claro que, visto hoje, o enredo pode soar como uma cópia das mesmas. Mas a verdade é o oposto: ele é a semente de grande parte das histórias que falam sobre vigilância, poder e autoritarismo. Meio século depois de sua publicação, a trama chega ao cinema ainda bastante afiada e cruelmente atual. O diagnóstico que King fez de sua geração pós-Segunda Guerra continua relevante: vivemos cada vez mais imersos na cultura do espetáculo, da violência e do reality.
Essa leitura, transportada com rigor pelo diretor Francis Lawrence (Constantine) e pelo roteirista JT Mollner (Strange Darling), garante que a aguardada adaptação vá muito além do peso de sua premissa. O filme entrega um drama visceral, ousado e desconcertante, impossível de ignorar, como o olhar que não conseguimos desviar de um acidente na estrada. Porém, o melodrama caminha junto.

Índice
Os acertos e erros de A Longa Marcha
A Longa Marcha é daquelas surpresas boas que crescem a cada passo que o roteiro dá. Parte de uma premissa simples, até rasa: cinquenta jovens são convocados para uma maratona sem fim em um Estados Unidos alternativo, marcado pela pobreza e pelo endividamento. O prêmio? Um desejo realizado e uma fortuna em dinheiro. A regra? Apenas um pode sobreviver. É direto ao ponto, sem os enfeites de Jogos Vorazes.
Aqui, sem dó, a violência é crua e implacável, mas logo dá espaço para um drama carregado de intensidade emocional, frases de efeito clichês e momentos genuinamente comoventes. Em alguns trechos, o filme se aproxima da dureza dos grandes survival movies; em outros, resgata a ternura da amizade juvenil, quase como em Conta Comigo. O resultado é uma narrativa que pulsa com a mesma cadência dos passos desses jovens infelizes.

A direção aposta em um ritmo espaçado (que deixa a caminhada ainda mais longa), abrindo espaço para diálogos existencialistas longos, mas não totalmente enfadonhos. E faz isso com um mérito raro: desenvolve profundidade em seus personagens sem recorrer aos manjados flashbacks. Conhecemos os meninos à medida que eles caminham, sofrem, amadurecem e se revelam dignos da jornada. O destaque fica para a dupla central — Ray Garraty (Cooper Hoffman) e Peter McVries (David Jonsson) —, cada um carregando motivações claras que se tornam mais intensas a cada quilômetro. E wow, que atores bons e que passam veracidade.
Conforme a marcha avança e os limites do corpo humano são testados até o extremo, a disputa pela sobrevivência deixa de ser apenas física e se transforma em uma batalha psicológica complexa. O espectador, assim como os jovens, é levado a sentir na pele a mistura de dor, esperança e medo. Uma das grandes virtudes do texto de King está justamente em sua simplicidade: por trás de uma premissa simplista, ele abre espaço para reflexões e críticas sociais poderosas.

Essa riqueza de camadas, felizmente, foi transportada para o filme com habilidade e sensibilidade. Há ali uma ode à gentileza e à camaradagem, mostrando que, mesmo em tempos de desespero, o ser humano pode revelar sua melhor face. É verdade que, em alguns momentos, isso escorrega para um melodrama piegas, mas seria impossível (e até injusto!) a obra existir sem esse toque de emoção. Afinal, é na dor e no sofrimento que mostramos quem realmente somos.
As atuações dos jovens são um triunfo à parte, sustentando todo o peso dramático da narrativa, apesar dos arquétipos de sempre. Já o vilão estereotipado, vivido por Mark Hamill (Star Wars), surge como um contraponto: superficial, raso como uma piscina infantil e, de forma proposital, tão detestável quanto deveria ser. E claro que há uma dose extrapolante de açúcar no texto e alguns momentos de tropeço, mas nada atrapalha a aflição da aventura e a angústia cortante dessa caminhada para a morte.

Veredito
Em A Longa Marcha, cada passo é um golpe no espectador: quanto mais os jovens avançam, mais cresce a aflição de quem assiste. Stephen King transforma a estrada em palco para refletir sobre o espetáculo da violência e o cruel prazer da tortura como entretenimento, agora traduzido ao cinema com precisão e força. O resultado é uma travessia angustiante, marcada por imagens gráficas duras e um drama de cortar o coração.
É uma história perturbadora, que incomoda e fascina na mesma medida, sustentada por atuações marcantes e uma leitura atenta de seu tempo. Poderia facilmente tropeçar na armadilha de glorificar a violência, mas escolhe outro caminho. Tal como em Jogos Vorazes, obra que bebeu de sua fonte, a amizade surge aqui como escudo contra a brutalidade do mundo. O resultado é um verdadeiro teste de resistência humana: duro, exaustivo, mas impossível de abandonar no meio do percurso.
Nota: 8/10
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