Para Flow, primeiro indicado da Letônia a uma edição do Oscar, a presença humana e suas intervenções são o que menos importa quando se trata do “fim do mundo”, ou meramente de um dilúvio aqui. Não à toa, o filme de Gints Zilbalodis elimina qualquer vestígio de suas presenças que não sejam a arquitetura das casas ou de grandes monumentos que começam a ser engolidos pela água. Tudo que nasceu pelas mãos humanas passa a ficar submerso, exceto um pequeno barco (arca?) que carrega um Gato, um Cachorro, uma Garça, um Lemurê e uma Capivara, ao mesmo tempo em que uma Baleia também os acompanha.
Índice
Os acertos e erros de Flow
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No campo das animações, tantos exemplares ao longo dos anos da Disney/Pixar e Dreamworks nos habituaram a acompanhar animais antropomórficos que reproduziam e incorporavam características humanoides, desde sua comunicação até a forma de viver em sociedade, indo de casa para seus empregos e de volta para suas casas. Em Flow, a comunicação se dá através da dinâmica instintiva dos animais que acompanhamos, livre de qualquer diálogo convencional e mergulhado (com o perdão do trocadilho) numa nova dinâmica social onde estes bichinhos, mais do que lutar pela sobrevivência, também encontram novas constituições familiares em seus esforços mútuos de apoio.
A água também é um personagem importante de Flow. Sem dar qualquer vislumbre sobre o mundo de antes e o que talvez venha a ser o mundo do futuro, a água assume essa posição de elemento misterioso e lírico, tanto um elemento de tensão e perigo (como segurar os nervos quando a água começa a subir e o Gato se encontra ilhado?) quanto de fascínio (os animais nadando livremente quando se lançam na água e observam os peixes coloridos). Este elemento, a substância primordial da sobrevivência, tanto criadora quanto destruidora, também simboliza o olhar da animação para com os bichos como eles são por natureza. É um elemento transformador, tal qual a relação construída entre animais com instintos de sobrevivência tão distintos.
Claro, apesar de serem animais, o que não falta são graus de personalidade aos bichinhos que nos ajudam a criar nossa própria identificação com suas escolhas e até mesmo anseios, como a garça que é abandonada pelos seus semelhantes.
Os arquétipos de transformação estão ali, prontos para serem explorados dentro das mais diversas possibilidades que nos aproximam da crença de que aquela constituição familiar é possível em meio ao caos. Mas não há tons emotivos nesse explorar, o que fora sua exuberância visual (já vamos comentar sobre isso), talvez seja o grande acerto do roteiro de Zilbalodis junto a Matiss Kaza e Ron Dyens.
Existe a intensificação de certos momentos de perigo para nos fazer temer pelos nossos bichinhos, mas na maior parte do tempo, Flow é unicamente sobre acompanhar aquelas criaturas tentando entender sobre o que seu mundo está se tornando e como o sair da zona de conforto também é sinônimo da sobrevivência não mais individual, mas coletiva.
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Através desta simplificação de olhares e narrativa, o filme cativa e nos transporta para a sua realidade com uma facilidade que é das mais comoventes, sem precisar de grandes arroubos para isso – executando uma cena particular em que a fantasia irrompe na narrativa sem grandes explicações, tão misteriosa quanto a água que ronda os animais naquele barco.
Finalizado no período de 5 anos com uma equipe reduzida e utilizando as técnicas do Blender, um programa de animação 3D gratuito, Flow encontra um de seus pontos mais charmosos nessa técnica imperfeita, fascinante aos olhos justamente pelas inúmeras possibilidades de explorar as suas imagens para muito além de qualquer pretenso realismo: o gato mergulha diversas vezes na água, mas nunca sai molhado dela, por exemplo. Mas para uma animação que explora, justamente, as imperfeições da existência, os aspectos mais rústicos e variáveis da técnica da animação se complementam muito organicamente à proposta do conjunto. É exuberante sem apelar à grandiosidade desmedida, uma vez que o senso de espetáculo de Flow se dá muito mais por essa jornada de redescobertas e sacrifícios (a cena final é de cortar o coração).
Veredito
Complete a tudo isso um trabalho de som meticuloso com toda a reprodução não só dos sons emitidos pelos animais, mas de toda a fauna e flora que busca renascer após o dilúvio, e Flow termina não somente como o provável merecedor da estatueta de melhor animação no Oscar 2025 (ele também está indicado a filme internacional), mas também um dos filmes mais misteriosos e líricos dessa temporada. São pouco mais de 80 minutos sobre a força da coletividade, mas também da individualidade e sobre como tudo isto, somado, dá sentido à existência. Lindo, lindo, lindo.
Ah, e uma dica: deem uma olhada nas redes do diretor Gints Zilbalodis. Vocês vão ver o quanto ele se mostra orgulhoso por esse projeto ter ganho a luz das salas de cinema e ter chegado até onde chegou.
NOTA: 8/10
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