Hollywood parece enfrentar uma crise criativa no gênero musical. O que já foi motivo de orgulho na Era de Ouro agora é muitas vezes omitido do material de divulgação, já que o público tem demonstrado certa resistência a filmes com números musicais (e sim, o problema vem de antes de Coringa 2!). Ainda assim, felizmente, essas produções continuam a ser realizadas, mesmo que mascaradas.
Adaptar Wicked, por exemplo, é uma tarefa monumental, comparável a trazer A Torre Negra para as telas e Game of Thrones para a TV. O universo de Oz é incrivelmente rico em detalhes, e o filme precisa fazer jus a um clássico do cinema, a um livro best-seller e a um musical da Broadway aclamado — sem mencionar a responsabilidade de agradar a uma legião de fãs fiéis e exigentes.
Mesmo diante desse desafio, o projeto finalmente ganhou forma, resultando em um filme que – rufem os tambores! – beira a perfeição. E suas pequenas falhas são compensadas pelo evidente cuidado em criar algo à altura de seu legado. Para garantir que nenhum detalhe ficasse de fora e evitar desagradar o público, a história foi dividida em duas longas partes, cada uma com quase três horas de duração. O resultado? Uma adaptação cinematográfica de Wicked que, assim como sua origem no teatro, é um espetáculo deslumbrante e um clássico instantâneo.
Os acertos e erros do filme
Baseado no livro de Gregory Maguire, que por sua vez reimagina o universo de Oz sob a perspectiva da vilã de O Mágico de Oz — o icônico filme de 1939 que marcou a história do cinema —, Wicked: Parte 1 explora com maestria a ambiguidade moral de seus personagens. Sem desconsiderar a trama do clássico, a obra subverte a mentalidade de sua época, trazendo questões muito mais profundas e relevantes para os dias de hoje.
Em vez de simplesmente julgar a bruxa, Wicked convida o público a refletir: e se a temida, verde e cruel Bruxa Má do Oeste não nasceu má, mas foi moldada pela crueldade, o bullying e a hipocrisia de uma sociedade conservadora? Mais do que suas grandiosas canções, compostas com excelência para a Broadway por Stephen Schwartz, Wicked é, essencialmente, uma narrativa sobre preconceito e sobre a zona cinzenta que existe entre o preto e branco que habita cada um de nós.
Elphaba, interpretada de forma arrebatadora por Cynthia Erivo (Harriet) — uma atriz negra cuja presença no papel traz ainda mais sentido do que a performance de Idina Menzel no teatro —, deixa de ser um mero símbolo do mal para se tornar o coração de uma narrativa doce e triste. A história acompanha a jovem bruxa em seus anos escolares, antes de Oz se transformar no que conhecemos e muito antes de sua trágica morte no filme de 1939, pelas mãos da jovem Dorothy Gale (Judy Garland).
Curiosamente, esta Parte 1 de Wicked começa exatamente onde o clássico dos anos 1930 termina, o que traz uma melancolia inevitável ao nos lembrar que a protagonista, por quem inevitavelmente nos afeiçoamos, já está condenada desde o início. O bem venceu — mas será que havia realmente um mal a ser derrotado, ou tudo não passava de hipocrisia?
Glinda, a Bruxa Boa, é retratada como enjoativamente carente e ávida por atenção, características que Ariana Grande (Não Olhe para Cima) interpreta com surpreendente brilhantismo. A cantora se revela uma estrela completa, entregando uma performance que surpreende por sua originalidade em relação ao material de base. Sua versão de Glinda é uma combinação irresistível de humor perverso e carisma, quase como uma Regina George saída de Meninas Malvadas. Cantando, dançando e encantando, Grande transforma a bruxa cor-de-rosa em uma figura cativante e hilária. É impossível não se divertir com sua atuação.
Aqui, o papel do vilão clichê é desconstruído minuciosamente, revelando traumas e motivações que despertam empatia, mesmo que suas ações permaneçam questionáveis. Elphaba, assim, emerge como uma heroína trágica, carregando o peso de temas como aceitação e injustiça. Sua pele verde simboliza diretamente questões raciais, tanto no mundo fictício de Oz quanto no nosso.
O musical é uma montanha-russa emocional de deixar os fãs enlouquecidos, alternando momentos de dor e tragédia com instantes de pura beleza visual. Embora a paleta de cores seja mais neutra e lavada em comparação ao vibrante filme de 1939 — um detalhe lamentável —, o espetáculo compensa com números musicais cativantes e coreografias engenhosas que aproveitam ao máximo os cenários luxuosos e feitos, na maioria, com efeitos práticos.
Apesar de sua duração estendida, que ocasionalmente deixa o ritmo cair em função do cafona triângulo amoroso que surge, a direção criativa de Jon M. Chu (Podres de Ricos e Em um Bairro de Nova York) mantém a energia e a magia do universo de Oz sempre em alta. A escola de magia, com suas peculiaridades, remete a Hogwarts, mas Chu transforma a comparação em algo único com uma direção de câmera que nos imerge completamente nesse mundo mais artificial. Seu maior trunfo, no entanto, está na exploração emocional profunda da dupla protagonista e na dinâmica complexa de amizade, admiração, raiva e inveja entre elas.
Entre os pontos fracos, o CGI deixa e muito a desejar, com muitas cenas de computação gráfica quebrando a imersão da história, em contraste com os momentos em que os efeitos práticos são melhor aproveitados. A direção de fotografia também não impressiona, ficando aquém do esplendor da cenografia. Jeff Goldblum (Jurassic Park), sempre excêntrico, assume o papel do enigmático Mágico da Cidade das Esmeraldas. No entanto, sua performance, apesar de sugerir uma reviravolta prometida para a Parte 2, não se destaca.
O mesmo acontece com Michelle Yeoh (Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo), cuja personagem, uma versão menos interessante de Minerva McGonagall, é bem interpretada, mas pouco desenvolvida. Suas nuances e motivações ficam em segundo plano, com a esperança de que ganhem mais profundidade na continuação, assim como a aguardada guerra contra os Animais falantes.
Muitas questões permanecem em aberto, e o filme faz grandes promessas para o futuro — uma escolha arriscada, já que cria expectativas que podem não ser atendidas. Sabemos desde o início do desfecho trágico de Elphaba, mas resta a dúvida: o que a Parte 2 pode oferecer de novo ou significativo diante do que já conhecemos? Só nos resta aguardar para descobrir se a continuação será capaz de reverter a tragédia ou, pelo menos, oferecer à protagonista o final digno que ela tanto merece.
Veredito
Wicked é uma daquelas histórias atemporais que atravessam gerações, sendo constantemente reinventada para refletir as nuances do rico universo de Oz. Assim como o aclamado musical da Broadway, o filme aprofunda temas como preconceito, injustiça e a responsabilidade coletiva da sociedade na criação de vilões.
Esse abismo emocional que a narrativa apresenta é impactante, sustentado de forma magistral pelo elenco estelar e pela direção cuidadosa. Os números musicais são vibrantes, e as performances de Cynthia Erivo e Ariana Grande são intensas e marcantes, que eleva Wicked: Parte 1 a uma experiência cinematográfica poderosa e inesquecível.
Porém, esta é apenas a Parte 1 de uma história maior, e resta acompanhar como a narrativa será concluída. Ainda que não tenha o brilho colorido e a magia artesanal do clássico de 1939, o filme encontra sua própria identidade e entrega um espetáculo visual deslumbrante que reacende a fé nos musicais de Hollywood. É impossível não se apegar a Elphaba, e agora só nos resta ansiar por muito mais desse universo fascinante.