Se ainda restava dúvidas sobre a versatilidade e a potência do cinema brasileiro frente ao que consumimos de fora, Arca de Noé chega para provar que o preconceito não se sustenta. Com um investimento surreal de cerca de 34 milhões de reais, esta é a animação mais cara já produzida no país, trazendo um elenco estelar e uma inovadora combinação de animação 3D e 2D.
De fato, o filme já nasce como um marco do cinema nacional, mostrando que o Brasil pode e deve competir de igual para igual com as grandes animações do ano. A obra impressiona tanto pela escala da produção quanto pela dedicação e carinho em cada mínimo detalhe, indo além do simples entretenimento infantil dos estúdios hollywoodianos atuais — uma verdadeira prova do potencial do cinema brasileiro.
Mas Arca de Noé tem inúmeras outras qualidades e méritos além de reunir uma vastidão de artistas brasileiros em apenas um único filme. Embora aborde um tema universal e de fundo religioso, o filme subverte expectativas ao adotar uma linguagem contemporânea, divertida e bem elaborada, que reflete a essência do Brasil e o público de hoje. Ele reinterpreta os poemas musicais do compositor Vinícius de Moraes com suavidade e doçura, apresentando à nova geração um pedaço da cultura brasileira de forma especial e atemporal.
Os acertos e erros do filme
A premissa, como podemos imaginar, parte da lendária história da arca de madeira construída por Noé, o justo e humilde personagem do livro de Gênesis, na Bíblia. Segundo a narrativa, Deus, ao observar a corrupção da humanidade, decide purificar a Terra com um dilúvio, mas poupa Noé e sua família em reconhecimento à sua retidão. Ele instrui Noé a construir uma arca e a levar consigo um casal de cada espécie animal para preservar a vida.
Na animação, porém, essa história ganha um toque lúdico e imaginativo, afastando-se do foco religioso. A trama usa apenas a ideia central da obra e a mistura com o livro infantil de poemas de Vinícius de Moraes, lançado em 1970, transformando-a em um musical cativante sobre convivência, amizade e empatia.
A animação se inspira na base da trama bíblica, mas introduz algumas alterações assertivas. A principal delas está nos protagonistas: os espirituosos ratinhos Tom e Vini, uma homenagem a Tom Jobim e Moraes. Diante do iminente dilúvio que permite apenas a entrada de um macho e uma fêmea de cada espécie, os dois amigos tentam encontrar uma maneira de entrar juntos na arca, mesmo sob a vigilância do severo leão Baruk.
Nesse ambiente, convivem com vários outros animais e enfrentam o desafio de sobreviver com pouca comida durante a longa jornada no mar. Tudo isso é acompanhado, naturalmente, das clássicas músicas que dão ritmo à história, como “A Casa”, “O Pato”, “O Leão” e “Corujinha”. Para dar vida aos protagonistas, foram escalados grandes nomes: Rodrigo Santoro como Vini e Marcelo Adnet como Tom. Fora Lázaro Ramos, Alice Braga, Gregório Duvivier, Bruno Gagliasso, Eduardo Sterblitch, Ingrid Guimarães, Heloisa Périssé, entre outros.
A narrativa é ágil (com cortes em excesso de deixar tonto), em alguns momentos, não acopanha o desenvolvimento emocional das personagens. Claro que para preencher um longa, é necessário certa dose de imaginação e mais tempo de tela para alguns elementos que não são as melhores escolhas, como o próprio vilão, apesar de divertido com sua linguagem equivocava, acaba sendo mais do mesmo dentro de uma história tão empenhada em sair do óbvio.
Ainda assim, esses pontos não chegam a cansar o espectador, pelo menos não o infantil. Cada personagem — e olha que são muitos — tem seu papel na construção do humor e faz com que nos importemos com suas escolhas. Embora a dupla de protagonistas seja a mais carismática e sua conexão a mais emotiva, todas as engrenagens funcionam de maneira harmoniosa para a proposta, seja nas deliciosas canções que agregam nostalgia ou mesmo na condução frenética dos experientes Sérgio Machado e Alois Di Leo – às vezes caótica demais, às vezes fora de controle.
É evidente o alto nível de afeto, dedicação e esforço investidos em cada detalhe da animação, que não deixa nada a desejar em comparação com produções internacionais. A tecnologia 3D é impecável e proporciona uma explosão vibrante de cores que enche os olhos de entusiasmo. Desde a composição dos cenários até a identidade de cada animal, tudo parece ter sido cuidadosamente planejado.
Uma das melhores escolhas, porém, é o uso de uma linguagem contemporânea, repleta de memes e referências ao humor da internet, que torna a comédia ainda mais envolvente e dá um belo contraste com a temática bíblica através dos tempos. A produção é pensada tanto para entreter as crianças quanto para arrancar risinhos dos adultos.
Veredito
É um prazer em dobro ver uma obra brasileira alcançar o nível de qualidade de Arca de Noé, um verdadeiro divisor de águas para o gênero animado no Brasil. Mais do que um marco técnico, o filme eterniza a doçura e a potência de Vinicius de Moraes, trazendo sua poesia com a essência brasileira para a geração TikTok e se conectando a públicos de todas as idades e culturas. No entanto, nem tudo é tranquilo nessa jornada: a narrativa hiperativa e frenética pode se tornar exaustiva após meia hora, embora o carisma dos personagens ajude a equilibrar o ritmo.
Arca de Noé evita a mesmice e compreende que adaptar essa história clássica para os dias atuais é uma tarefa cheia de bênçãos e desafios. Talvez o filme não seja visto como “sagrado” pelo público evangélico, mas é uma obra marcada por doçura, eficiência e uma vontade genuína de fazer história no cinema nacional. É essa dedicação que mantém a animação firme e forte como uma das produções infantis mais divertidas e apaixonantes do ano. Assim como a própria arca, o filme carrega um legado que certamente marcará o nosso audiovisual por muito tempo.