Crítica | Ainda Estou Aqui – Brasil ensolarado em meio a um eclipse total de moralidade

Em pleno 2024, ainda há quem ainda diga que a ditadura no Brasil nunca existiu. Felizmente, o cinema brasileiro continua a nos lembrar desse período sombrio, que gostaríamos que realmente nunca tivesse acontecido. Aquela velha máxima, de que quem desconhece sua história está fadado a repeti-la, se faz presente através da arte, que, mesmo censurada por anos, encontrou força em cineastas como Walter Salles (Diários de Motocicleta) em uma época cujo assunto é possível ser falado. Um exemplo disso é o tocante e profundo Ainda Estou Aqui, baseado no livro biográfico de Marcelo Rubens Paiva e na história comovente de sua família partida em pedaços.

Embora o filme revisite um passado de dor e angústia, ele foca em um recorte dos anos 1970, quando a felicidade foi sufocada pelo poder opressor. Mesmo com tantas obras já explorando esse tema, é revigorante ver novos olhares ainda surgindo. Salles realiza o que parecia impossível: cria um filme familiar que celebra a doçura e a união inabalável de uma família que lutou para sobreviver à ditadura. Ao evitar as armadilhas de um filme excessivamente político, o roteiro mergulha na eterna busca por justiça daqueles que ficaram. E nos faz derramar lágrimas pesadas com isso.

Os acertos e erros de Ainda Estou Aqui

Desde que Ainda Estou Aqui entrou em destaque na mídia, grande parte da atenção se voltou apenas para a performance arrebatadora de Fernanda Torres (buscando vingança pelo Oscar roubado de sua mãe, Fernanda Montenegro) no papel de Eunice Paiva, a mãe da família e ativista. E com razão. Torres mergulha profundamente nos sentimentos mais sombrios para interpretar uma protagonista contida e silenciosa, cuja principal arma é o olhar carregado de pavor. Em vez de recorrer a explosões emocionais, a atriz segue um caminho mais sutil, tocando o espectador pelo peso que confere a uma mãe desesperada para proteger seus filhos e seu marido da brutalidade daquele período.

No entanto, o filme vai além dessa atuação poderosa. Muito de sua força reside no realismo, na escolha do roteiro brilhante de focar na emoção e na capacidade da direção em capturar, com precisão, a naturalidade do extenso elenco. Embora Torres seja o motor que impulsiona a trama, a verdadeira alma do filme está na decisão de explorar o drama familiar, e não apenas o terror político. Essa abordagem mais intimista é o que torna a obra tão impactante e o que cria conexão mesmo com quem nunca viveu tal agonia.

Tanto Selton Mello (Sessão de Terapia) quanto os jovens atores da família (com destaque para a sempre ótima Valentina Herszage), desempenham papéis essenciais nessa construção da ligação emocional que dilacera o coração do público quando é rompida. Assim como James Wan criou uma família genuinamente perfeita em Invocação do Mal, por exemplo, Salles sabe trabalhar com elenco, também foca nas sutilezas desse grupo familiar e explora a conexão e o apoio entre eles no momento da tragédia.

A atmosfera dos anos 70 em um Rio de Janeiro caloroso e vibrante, retratada tanto na trilha sonora espetacular quanto na estética das filmagens de Salles, capta com maestria a rebeldia incontrolável e a alegria contrastante com as sombras opressoras que dominavam o país.

Cada recriação histórica é habilmente integrada à trama, com um design de produção imersivo e uma fotografia sensorial de Adrian Teijido, que deixa o projeto com cara de “filme de verão” envolvido em uma história de horror brasileira. Diferente de outras produções sobre a ditadura, Ainda Estou Aqui milagrosamente brilha com vivacidade, irradiando nostalgia e muito afeto pelos seus personagens.

Os momentos de felicidade no filme são tão agridoce que, quando o roteiro mergulha no horror e na violência disfarçada de ordem da ditadura, sentimos um choque visceral. É como se o contraste nos atingisse em cheio. Assim como fez em Central do Brasil anos atrás, Walter Salles consegue, como poucos, infundir amor na tristeza de um país que, muitas vezes, apaga sua própria história em favor de viver as narrativas do estrangeiro.

Veredito

Embora conte com um elenco de peso e uma Fernanda Torres absolutamente entregue em um dos maiores, se não o maior, papel de sua carreira, é nas sutilezas e no drama familiar sensível e comovente que Ainda Estou Aqui revela seu verdadeiro potencial para trazer um Oscar ao Brasil. Walter Salles nos corta como uma navalha ao retratar um Brasil ensolarado em meio a um eclipse total de moralidade.

Com execução brilhante, marcada pela confiança de um cineasta que domina o trabalho com o elenco e, acima de tudo, sabe construir uma narrativa emocional poderosa, o filme se distancia das obviedades de um manifesto político e abraça o lado humano de quem perdeu tudo quando ser feliz era proibido.

Para que nunca esqueçamos que um dia o Brasil sufocou o amor, Ainda Estou Aqui nos proporciona uma experiência aterradora e sincera, nos fazendo sentir o que foi viver sob a ditadura militar. É um filme de partir o coração e, ao mesmo tempo, de reconstruí-lo mais forte. Que venha o Oscar, finalmente.

NOTA: 9/10

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