Crítica | Tudo o Que Você Podia Ser – Um olhar otimista diante do mundo cruel ao seu redor

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Como evoca a atemporal canção de Milton Nascimento, às vezes sonhamos tanto em ser alguém que nos esquecemos de viver. Essa linha tênue entre a vida adulta e a juventude tardia é ainda mais intrincada para uma pessoa queer, forçada a amadurecer precocemente ou a viver uma adolescência tardia.

No filme Tudo o Que Você Podia Ser, do diretor Ricardo Alves Jr, essa complexidade ganha vida ao narrar as histórias de quatro protagonistas LGBTQIAP+, explorando suas jornadas pessoais e as diversas possibilidades que lutam para alcançar. O roteiro doce e honesto de Germano Melo celebra a diversidade, a aceitação e a autodescoberta, com aquele toque inconfundível que só o cinema brasileiro sabe proporcionar.

Apesar das muitas mensagens positivas que o filme transmite ao longo de suas quase 24 horas de narrativa, o que realmente se destaca é o senso de comunidade que ele explora e como redefine o conceito de família para além das normas tradicionais. O texto é impregnado de amor e improviso, mas também carrega uma melancolia e uma dor sufocante, enclausurada nas personagens. É uma adição profundamente significativa à cinematografia queer brasileira.

Os acertos e erros do filme

Tudo o Que Você Podia Ser é uma história sobre vivência, rotina e, acima de tudo, sobre a incansável busca pela felicidade, uma maratona que, para uma pessoa LGBTQIAP+, parece ser duas vezes mais árdua. Com um roteiro simples e uma direção visual que dá vida e forma ao texto na boca de suas personagens complexas e diversas, o filme destaca a luta pela coexistência em uma sociedade impregnada de ódio e violência.

Ambientado na vibrante Belo Horizonte, um cenário ainda pouco explorado pelo cinema nacional, a trama acompanha o último dia de Aisha na cidade. Este dia de despedida se desenrola na companhia de suas melhores amigas: Bramma, Igui e Will. Entre festas e conversas profundas sobre aceitação e acolhimento, a mudança de Aisha está longe de ser um adeus definitivo. E tudo funciona ainda melhor graças às performances do elenco e à química impressionante do grupo, destacando-se a magnética Aisha Brunno e o naturalmente cômico Will Soares.

A produção é simples em sua essência, com uma história tão poderosa que merecia um acabamento mais refinado, um pouco mais de polidez, embora isso não diminua o impacto de suas mensagens. Com um olhar contemplativo sobre a rotina, Ricardo Alves Jr. realiza um trabalho excepcional de observação e intimidade, que se revela de maneira tão natural quanto convincente. Não é fácil capturar essa ambientação intimista com tamanha sensibilidade. Definitivamente, um nome para ficarmos atentos no futuro.

Os momentos mais cômicos do filme surgem do improviso do elenco, conferindo um tom ainda mais documental e orgânico à narrativa. Optando por uma abordagem centrada no afeto, o filme transborda doçura e carinho, em vez de focar nas violências extremas enfrentadas pela comunidade.

Pode parecer um tanto irreal, mas essa camada de amor sutilmente oculta a dor e os conflitos internos que cada personagem carrega. A câmera permite que o texto flua sem interrupções, destacando sua maior força: a química do elenco em diálogos que definem o ritmo da história.

Temas contundentes como intolerância, HIV, afeto e sexualidade são abordados nas cenas, às vezes com lágrimas, outras com humor. Embora não sejam o foco principal, as feridas são tocadas de maneira corajosa, ainda que sem muita profundidade. A cinematografia carece de um toque mais marcante para afastar a sensação de peça teatral filmada, o que poderia conferir ao filme uma identidade ainda mais robusta, como vemos em obras como Medusa e Pedágio.

Curiosamente, o filme estreia simultaneamente à comédia 13 Sentimentos. Enquanto um explora a vivência de um homem gay branco na caótica São Paulo, Tudo o Que Você Podia Ser oferece um recorte ainda mais poderoso sobre a comunidade negra trans, travesti e não-binária. Ambos, no entanto, celebram a diversidade que a bandeira abraça.

Veredito

Tudo o Que Você Podia Ser oferece um retrato afetuoso do verdadeiro significado de comunidade e das vivências de pessoas que nunca desistem de buscar o melhor para si mesmas. Este drama floresce diversidade e carinho através de uma perspectiva mais doce e menos violenta do mundo queer brasileiro, mas falta polidez e uma maior profundidade em alguns dos temas abordados.

Com um elenco excepcional, uma direção sensível e um humor afiado, é difícil não se divertir e se emocionar com essa história simples de uma despedida carregada de esperança em um país que, tristemente, lidera em homicídios de pessoas trans.

O filme explora as possibilidades de felicidade negada àqueles que não se encaixam nos padrões impostos. Entre beijos e abraços, passamos uma noite de muito aprendizado sobre o verdadeiro significado de acolhimento. É triste pensar que pedir pela sobrevivência é algo tão banal, tão simples, mas para muitos é o manifesto de uma vida inteira de luta pela existência. Carregado de dor nas profundezas, Tudo o Que Você Podia Ser opta por um olhar mais otimista diante do mundo cruel ao seu redor.

Nota: 8/10

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