“Deus me livre cidadão de bem” talvez seja uma das frases que mais representa o Brasil atual e agora, nesse período pós-bolsonaro, as minorias ainda colhem as sementes do ódio plantadas no país durante a ascensão da extrema-direita ao poder. E se o sujeito autoritário chegou ao topo de seu delírio mais absurdo, certamente os responsáveis foram a religião, a igreja conservadora e seus membros equivocados que distorceram a devoção à Deus até caber no que lhes convém e, através disso, criar um discurso de proteção à família tradicional que só serve para promover tiranos.
Dito isso, o cinema nacional, como bom holofote que direciona a luz para assuntos que precisam ser vistos, explora esse tema em toda a sua plenitude no sarcástico e provocador Medusa, longa-metragem da diretora Anita Rocha da Silveira (do ótimo Mate-Me Por Favor) que expõe os conflitos da juventude cristã enquanto cria um suspense intrigante sobre liberdade sexual, aprisionamento religioso e as demais hipocrisias do cidadão de bem. Além de estiloso, o filme bebe da fonte de obras consagradas como Olhos Sem Rosto e Divino Amor, para desenvolver sua atmosfera oitentista divertida, estimulante e devota a cutucar feridas abertas da sociedade. Uma verdadeira delícia de prece.
A trama e o elenco
O que a diretora Anita Rocha da Silveira faz, no auge de sua genialidade cinematográfica, é expandir a gravidade do “Deus acima de todos” para questionar onde o Brasil de hoje se encontra, sem medo algum de acertar alguns alvos pelo caminho. Além de transições elegantes e uma narrativa que envolve, grande parte da força do filme está também no elenco excepcional, encabeçado pela revelação Mari Oliveira, que segura a história nas costas sem deixar a energia cair. De fato, uma surpresa agradável, assim como as mudanças de nuances de Lara Tremouroux, outra excelente adição ao grupo.
As duas estrelas cruzam juntas esse céu de críticas sociais desenvolvido pelo roteiro brilhante e trazem à tona diversas reflexões relevantes sobre o poder da religião cristã no Brasil e como meninas muito jovens passam por uma verdadeira lavagem cerebral em algumas instituições extremistas. Ao tecer uma camada de proteção e perfeição inalcançáveis, essas jovens, que buscam a palavra de deus, são levadas, na realidade, ao inferno para promover a doutrina de “bela, recatada e do lar”.
Dentro desse enredo afiado, Mariana (Mari Oliveira) pertence a um mundo onde deve manter a aparência de ser uma mulher “perfeita” aos olhos da sociedade. Para não cair em tentação, ela e suas amigas se esforçam ao máximo para controlar tudo e todas à sua volta. Quando a noite chega, saem por aí mascaradas e formam uma “gangue da conversão”, que caça e pune aquelas que se desviaram do caminho que julgam ser o correto. No melhor estilo Assassination Nation de tensão – ou quem sabe um Meninas Malvadas crente – o grupo justiceiro enfrenta o desafio de ter que lidar não apenas com a sua própria hipocrisia, como também com uma figura lendária, uma lenda urbana local, que teve seu rosto desfigurado por elas e está desaparecida, vivida pela conhecida Bruna Linzmeyer.
Entre surtados momentos de suspense e cenas dramáticas feitas para incomodar, a trama progride de maneira previsível, mas, ainda assim, impactante, especialmente por mostrar a dualidade da protagonista, seus desejos íntimos e o conflito que possui com a igreja “progressista” que frequenta, onde é vista como uma princesa, um exemplo a ser seguido pelas meninas mais jovens.
Fora desse mundinho simulado, Mari encontra a realidade nua e crua do Brasil e se reencontra no âmago de seus pecados mais doces, sobrando espaço ainda para fazer críticas ao cruzamento perigoso da política com a religião para a criação de falsos deuses, aqui interpretado pelo astro Thiago Fragoso, que dá vida a um pastor conservador, cujo sonho é entrar para a política e disseminar seu discurso aterrador entre os mais influenciáveis.
Porém, o filme deve encontrar certa rixa com parte do público tradicionalista, uma vez que há uma boa dose de reflexões sobre violência doméstica, submissão feminina, masculinidade tóxica e feminismo deturpado – ao mostrar como as próprias mulheres por vezes transformam umas às outras em monstros -, que completa essa ousadia incomum em um filme brasileiro contemporâneo. Além do mais, tanto a trilha sonora quanto a fotografia minuciosamente pensada para cada cena, dão ao filme muito estilo, qualidade e mostra o bom aproveitamento de seu orçamento limitado – praticamente um filme artístico da A24 se a A24 tivesse um pezinho no Brasil.
Veredito
A visão feminista de Anita Rocha da Silveira sobre um Brasil corroído pelo extremismo religioso faz de Medusa um dos filmes mais importantes dos últimos anos, especialmente nesse período pós-bolsonarismo. Destemido em tocar nas feridas expostas da sociedade, o roteiro não tenta ser um curativo para as dores causadas, mas sim brilha ao ironizar o “cidadão de bem” e seus discursos perigosos.
Com exceção de algumas falhas no ritmo e personagens difíceis de criarmos empatia e conexão, o drama é criativo em sua narrativa e poderoso na oração que faz, mas deve encontrar obstáculos no público conservador, mesmo que não seja feito visando conquistá-los. O esforço é admirável e funciona boa parte do tempo, seja na crítica social que abraça ou no suspense gerado por sequências dignas de bons filmes de terror. Um filme notável, provocador e que explora a culpa cristã como poucos.
NOTA: 8/10
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