A beleza do cinema está na forma indecifrável de como um filme atinge de forma diferente cada indivíduo. Se ver na tela é um fator emocional muito descontrolado e algumas emoções podem ser difíceis demais de serem suportadas. Cada gatilho desbloqueado por uma história pode se tornar um abismo enorme cuja queda ou nos fortalece ou nos arruína de uma vez. Dito isso, eu sou um homem gordo. Não há como fugir disso. Então, sem surpresa, A Baleia (The Whale) – que chega ao Brasil pela California Filmes – e que retrata a história sobre um homem acima do peso, tinha potencial para ser um filme profundamente pessoal para mim. Escrever sobre isso, ainda mais. O que não esperava era o quão pessoal isso poderia se tornar.
Ainda que seu maior desafio fosse fugir de ser fóbico e explorador, mesmo inevitavelmente sendo boa parte do tempo, há quem vá assistir A Baleia pelo olhar de insatisfação pelo retrato cru de um obeso e há quem vai ver pelo simples alerta que ele faz sem rodeio. Infelizmente, não existe resposta certa e A Baleia funciona sim dentro dessas duas vertentes: ferir e conscientizar, sem que, para isso, precise envergonhar o espectador que possa se encaixar nesse mundo. Mas a dor e o constrangimento são irremediáveis e fogem do (des)controle do diretor Darren Aronofsky.
A trama e o elenco
Sem dúvida, o maior atrativo de A Baleia está no tão falado retorno do astro Brendan Fraser (A Múmia) aos cinemas após uma carreira de altos e baixos e, de fato, sua volta é triunfal. Com uma performance crua e monumental, o ator vive aprisionado dentro do corpo de 300 quilos de Charlie, um homem doce, gentil, solitário, que adora honestidade e que viveu uma vida repleta de arrependimentos e perdeu o controle de sua própria existência. Com problemas de saúde cada vez mais complexos e uma recusa em se tratar, o sujeito permanece enclausurado na sua casa pequena e suja, reflexo de sua própria prisão sem muros por conta da obesidade mórbida que tem.
O roteiro, ainda que denso e impiedoso, baseado em uma peça teatral de mesmo nome, deixa claro que esse excesso – apesar de sempre ter sido grande – do protagonista foi desencadeado por conta de outros fatores, como luto pela perda de seu amante, e que não é apenas uma “preguiça” que o deixou enorme desse jeito. Um cuidado interessante e que foge de simplesmente ser gordofóbico.
Desde o começo, o diretor Darren Aronofsky pinta um retrato sombrio do pobre Charlie. Ele é um professor de inglês recluso que se isolou do mundo, que fica tão envergonhado consigo mesmo que mantém sua webcam desligada enquanto ministra seus cursos universitários. Há sempre chuva do lado de fora de sua casa e essa atmosfera nublada (fotografia em tons de cinza) parece ser uma extensão da melancolia e da angústia da alma de Charlie naquele lugar sem vida.
Por conta dessa imensidão de sentimentos trancafiados, a pura autenticidade da performance de Fraser impressiona ao dar vida e sentimentos a esse homem que já desistiu de si mesmo. A cada nova culpa que sente, mais uma barra de chocolate ele come, cada comentário cruel que ouve, mais uma garrafa de refrigerante ele bebe. E, com isso, ele se condena ainda mais ao inevitável fim que a trama promete, afinal Charlie está morrendo, enquanto se apega a um ensaio sobre Moby Dick toda vez que está perto de seu último suspiro. É de longe uma das performances mais autênticas que já vi no cinema e que fica com a gente por muito tempo após o filme acabar.
No entanto, ser um homem gordo é – ironicamente – apenas um pequeno aspecto de sua vida, já que ele é um pai apaixonado, um amigo e um amante em luto, explorado em toda a sua complexidade e com o carinho e empatia necessários de um roteiro inteligente e consciente de seu impacto. Com a direção conduzindo de forma excepcional e com o senso de humor cabível de seu elenco, as reflexões são poderosas, assim como o choque que nos causa ao ver Fraser daquele tamanho, fruto de um trabalho tremendo de maquiagem e próteses. Ainda que grande e exagerado nas proporções, Charlie não é a vítima coitadinha, é tão humano quanto qualquer um de nós e sua visão otimista do mundo arranca todas as nossas lágrimas, especialmente por esse mesmo mundo ser tão perverso com ele.
E se a atuação de Fraser é o coração dessa história, Sadie Sink (Stranger Things), que interpreta sua filha desobediente, é a alma. A raiva adolescente que borbulha dentro dela é um contraponto à tristeza de Fraser – duas formas de lidar com a tragédia que se opõem e se chocam. Sink também traz uma performance assombrosa, ofuscada apenas pelo brilhantismo de Fraser no que pode ser o papel decisivo de sua carreira. A dinâmica deles emociona e é de partir o coração. Além disso, há uma trilha constante e densa durante todo o filme, que mescla sons do mar e o vazio da imensidão aquática, tornando tudo ainda mais atmosférico e deprimente.
Veredito
Com o impacto emocional que A Baleia provoca e suas performances colossais, somos forçados a enfrentar algumas verdades cruas e desconfortáveis em águas desconhecidas durante essa jornada sombria, angustiante e tocante que mergulhamos. Esmagadoramente honesto em seu desempenho, Brendan Fraser, por sua vez, vive sua complexa virada de carreira e surpreende a cada nova cena. Um retorno glorioso às telas como poucos são capazes de fazer.
Depois de algumas obras duvidosas, Darren Aronofsky (Mãe!, Cisne Negro) volta a fazer o que sabe de melhor: nos provocar a superar nossos próprios preconceitos, uma vez que percebemos que o filme é muito mais sobre como cada um de nós lida com esse assunto delicado, do que sobre um homem obeso que não consegue se levantar sozinho. Essa reavaliação de nós mesmos e exercício de empatia é que faz de A Baleia uma obra tão necessariamente forte e, por consequência, divisiva, nutrida de sentimentos necessários para quebrar nosso coração da melhor maneira possível.
NOTA: 9/10
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