Crítica | Marte Um – Vastidão de sentimentos no filme mais necessário do ano

O cinema é a arte dos sonhadores, reservado àqueles que contam histórias com imagens que ficam em nossas cabeças por muito tempo. E utilizar a linguagem cinematográfica para passar afeto é algo extraordinário, fruto do talento de poucos. Mas, uma vez ou outra, o cinema deixa seu lado entretenimento/blockbuster de escanteio para nos fazer embarcar em histórias tão cativantes e únicas, que transcendem seus próprios limites e rumam em direção ao infinito. Por isso, quando pensamos no motivo pelo qual chamados cinema de arte, Marte Um é o tipo de filme que corrobora essa afirmativa.

Uma vez que o cinema nacional é rico em trabalhar a veracidade do ambiente em que se situa, o filme do cineasta Gabriel Martins parece ir mais além e nos coloca dentro de uma típica família brasileira na periferia de Minas Genais durante o contexto da posse do então presidente Jair Bolsonaro, o momento em que nascia no país um sentimento de medo e revolta, especialmente para a população mais pobre. Mas nesse mundo sufocado pelo racismo estrutural e a desigualdade, como uma flor numa calçada de cimento, nasce o sonho de um menino que tem o poder de nos modificar por completo. Você entra uma pessoa antes de Marte Um e sai outra completamente diferente.

A trama e o elenco

Após arrancar elogios pelo Festival de Sundance, a produção ainda pouco conhecida está conquistando, perdão o trocadilho, seu espaço, algo que não deve ser tão difícil assim, tendo em vista o afeto que consegue extrair do público sem grande esforço, fruto de um roteiro minuciosamente bem trabalhado e totalmente autêntico. No centro desse enredo carregado de ternura, acompanhamos o menino Deivid (vivido pelo ótimo Cícero Lucas), o caçula da família que sonha em ser astrofísico e participar de uma missão que em 2030 irá colonizar o planeta vermelho. Mas, como podemos imaginar, morando na periferia de um grande centro urbano (e sendo um jovem negro num país racista), não há muitas chances para isso, mas mesmo assim, desistir não é uma opção.

Contrariando seu pai Wellington (Carlos Francisco, de Bacurau) – que quer vê-lo como jogador de futebol, uma vez que acredita que esse seja o único caminho possível – o garoto passa horas assistindo vídeos e palestras sobre astronomia na internet, desejando um dia partir para explorar os mundos que existem longe do seu pequeno e limitado planeta. E esse sonho de criança é o fio condutor da trama, que nos faz refletir não apenas sobre nossas próprias vidas como também sobre a insignificância do ser humano na vastidão do universo. Trata-se de um filme sobre contrastes: Ricos e pobres, sonhos e realidade, especialmente dentro de uma família otimista que vive na silenciosa margem de uma grande cidade. A abordagem é sincera e crua, mas nunca vazia.

E para conquistar essa dinâmica familiar excepcional, a direção e o elenco trabalham em comunhão em prol de extrair as relações humanas mais honestas possíveis com uma química profunda. Todos os personagens são bons e possuem arcos dramáticos que flertam com problemas específicos do Brasil. A matriarca, vivida por Rejane Faria, vive uma síndrome do pânico após um incidente e acredita estar carregando uma maldição que afeta sua família. Wellington, ex-alcoolista, é porteiro em um prédio de elite e se sujeita a diversas humilhações diárias. Já a filha mais velha, Eunice (Camilla Damião é outra que brilha), pretende se mudar para um apartamento com sua namorada, mas não tem coragem de contar aos pais. Ou seja, um completa as lacunas do outro e juntos eles compõem um núcleo familiar delicioso de ser assistido.

O senso de humor ácido, ainda que presente, não ofusca a beleza dramática da história e sua natural fluidez. A ambientação tem o Brasil na espinha dorsal, algo que gera uma fácil e nostálgica conexão emocional com o público, ainda mais poderosa para quem nasceu e cresceu na periferia, cercado de sonhos aprisionados em pequenas caixas. Ir à Marte é apenas uma das belas analogias e metáforas que o roteiro faz sobre ir além das nossas expectativas quando vivemos em lugares de pessoas que conhecem seus limites e não vão além. Deivinho, doce e determinado, nada contra toda a maré asfixiante do Brasil de Bolsonaro e alimenta seu sonho pois sabe que ele é real, palpável e que nasceu intrínseco dentro de si.

A simpatia singular do texto e a naturalidade dos atores em cena (todas as atuações são maravilhosas) nos faz entrar na aventura logo nos primeiros minutos e, uma vez que somos capturados pelos dilemas, alegrias e dores daquela família unida, nosso coração nunca mais sai dali. Vamos do riso espontâneo às lagrimas sem que haja forçação de barra ou mesmo que a história se torne piegas. A emoção é orgânica e isso é raro de se ver.

A direção

Apesar do filme mirar em Marte, o que vemos é o nascimento de uma estrela com Gabriel Martins e seu olhar aguçado e autêntico. Assim como o cinema de grandes nomes como Jordan Peele, a força de sua história nasce e se beneficia de pautas raciais necessárias de serem discutidas, mas não depende apenas delas para se sustentar. Marte Um é sobre desigualdade, mas também é uma história de amor pela vida. É sobre a necessidade da família, sobre a imaginação de uma criança e sobre os sonhos que não devemos abdicar apenas por serem distantes demais ou por alguém dizer que nunca vamos chegar lá.

Além de proporcionar observações genuínas – graças à sua experiência como roteirista e vivência – Martins faz muito com o pouco orçamento e mostra que sabe conduzir uma trama com maestria, sensibilidade e alegria. Entrega enquadramentos belíssimos, bom ritmo e uma trilha sonora que parece ter vida própria. Não há absolutamente nada fora do lugar.

Conclusão

Como um cometa raro, que passa de tempos em tempos nos céus do cinema, Marte Um deixa um rastro de emoção genuína, captado pelos olhos de uma direção apaixonada e um elenco excepcional dentro de um filme que flui doçura. O sincero cinema brasileiro no melhor que pode nos oferecer.

O rumo da aventura é Marte, mas talvez este filme atravesse tão fundo seu coração que seja difícil esquecê-lo com facilidade. E, em ano de eleição para presidente do país, não é atoa que nossa única esperança por dias melhores e mais justos está mesmo é numa estrela. Marte Um é poderoso, necessário e, acima de tudo, um abraço de afeto seguido por um “tudo vai ficar bem” na insignificância da Terra.

NOTA: 10/10

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