Nós pagamos ingresso de cinema para sermos surpreendidos. E inovar parece ser algo cada vez mais raro no cinema fast-food hollywoodiano. Sair do óbvio e brincar com as possibilidades é um dom para poucos realizadores e uma dádiva dos visionários. Mas, felizmente nascemos na mesma época em que Jordan Peele faz filmes. Afinal, quem mais pensaria em pegar uma história de ovnis e subvertê-la a ponto de transformá-la em algo absolutamente original, aterrador e carregado de simbolismos, como vemos em Não! Não Olhe! (Nope)?
O que o cineasta de Corra! e Nós! mostra profunda evolução do seu trabalho anterior e, dessa vez, vai muito além da típica ficção científica sobre alienígenas na Terra. Na realidade, vemos uma fantástica carta de amor à farsa de Hollywood e ao whitewashing que tingiu de branco os primórdios do cinema. Isso sem se esquecer de criar uma trama subversiva e divertida na medida certa, que toca na ferida exposta da indústria, mas que também funciona como uma reparação histórica discreta.
A trama e o elenco
Não! Não Olhe! é tecnicamente um passo largo na carreira do diretor e isso é fantástico se consideramos que este é apenas o seu terceiro filme. Agora com orçamento mais vasto para gastar e com uma trama mais ousada que as anteriores, Peele brinca de Steven Spielberg e faz o novo Tubarão do cinema que, por vezes, até supera a tensão única estabelecida no clássico. Essa união deliciosa de Contatos Imediatos do Terceiro Grau com Sinais e The Twilight Zone vem de um enredo relativamente simples e direto ao ponto.
Na trama, acompanhamos os vaqueiros Otis “OJ” Haywood Jr. (Daniel Kaluuya está fantástico) e sua irmã Emerald (Keke Palmer rouba a cena), que, após a morte violenta de seu pai sob circunstâncias misteriosas, encontram maneiras contrastantes de seguir em frente com o rancho. Para OJ, que testemunhou de perto a morte do pai, é uma questão de manter o negócio rodando. Já Emerald, mais extrovertida, trata de deixar o passado para trás e comercializar seus vários talentos – incluindo o parceiro de negócios de OJ, Ricky Park, também conhecido como “Jupe” (Steven Yeun), um ator que se tornou empresário que dirige uma feira temática de velho oeste. Porém, como ex-estrela infantil, ele tem alguns traumas (altamente mostrados no filme).
Aliás, esses traumas mostram o passado do personagem durante um ataque de fúria de um animal adestrado para ser astro de uma série de TV (e essa sequência pesada), ou seja, uma perfeita alegoria para a forma como a indústria do cinema explora minorias e, ao mesmo tempo, faz uma conexão direta com a fúria predatória que viria à seguir pela criatura alienígena que fica à espreita nas nuvens. Por mais que o filme seja sobre personagens ameaçados pelo que poderia ser um disco voador, há também a adição da ambição de tornar aquele espetáculo sinistro algo comercial e, obviamente, ter algum lucro com isso. Afinal, monetizar a dor faz parte da indústria. Uma atitude bastante diferente dentro do gênero. Mas não pense que essa veia cômica ofusca o horror, muito pelo contrário, há sustos de arrepiar a espinha e um suspense genuinamente tenso do primeiro minuto ao final.
Carregado de metáforas sobre escravidão e exploração dos negros na América, assim como a cobiça do entretenimento e o espírito carniceiro em passar por cima de qualquer um para chegar onde deseja, Peele retorna para contar a história de Eadweard Muybridge em 1878, mas não sobre o fotógrafo em si, mas sim sobre o homem preto que montava o cavalo que viria a se tornar um dos primórdios da fotografia e do cinema. Enquanto Muybridge é mundialmente conhecido, o cavaleiro permanece anônimo até hoje. Através da fantasia, o cineasta corrige esse apagamento profundo da negritude na história de Hollywood ao colocar OJ e Em como seus descendentes diretos.
Por um lado, é uma ode ao cinema e ao poder das imagens em movimento, já que os irmãos contratam um diretor renomado para “filmar o impossível e fazer imagens de alta resolução” do objetor voador que persegue a casa. Com isso, a produção brinca com o uso da tecnologia analógica dentro de um filme filmado em IMAX. É divertido e ousado, claro. Já no terror, enquanto emprega as ferramentas tradicionais do gênero – como cantos escuros e música irregular para a maioria de seus jump scares – Peele troca a linguagem cinematográfica do faroeste por momentos mais genuinamente enervantes de medo, pavor e agonia, que os deixa na ponta da cadeira, algo semelhante ao que sentimos no ótimo Rua Cloverfield, 10.
A direção
Com muita genialidade, Jordan Peele sai do estúdio para fazer um filme em planos abertos espetaculares. Em Não! Não Olhe!, diferente dos filmes de terror tradicionais, espaços abertos e em plena luz do dia são ainda mais ameaçadores por conta do predador que se esconde no céu e que guarda um visual tão sublime e chocante que chega a ser difícil descrever a experiência.
A trilha, por sua vez, é perturbadora. A maioria de seus arrepios são evocados graças a uma paisagem sonora retumbante e que exige uma experiência na maior tela possível. Sabendo da importância que seus personagens carregam dentro da história, muitas vezes a trama blockbuster desacelera para mergulhar nas relações humanas entre eles e isso é a prova da capacidade de Peele de fazer muito com pouco. Uma capacidade que nem mesmo um grande orçamento o faz abdicar.
Conclusão
No auge de sua criatividade e ousadia, Jordan Peele mistura cinema de arte com blockbuster e nos presenteia com mais um filme primoroso e, quem sabe, até maior do que seus anteriores. Não! Não Olhe! subverte clichês, brinca com as mentiras de Hollywood e diverte com personagens cômicos, mas também arranca arrepios da espinha como poucos filmes conseguem fazer. Um suspense visceral e ambicioso que eleva os filmes de invasão alienígena a outro nível de excelência.
Para uma obra cujo título pede para não ver, você sabe que precisa assistir e ser abduzido para o mundo absolutamente arrebatador de Jordan Peele e seu cinema visionário. Mas não espere por muitas respostas, apenas se deixe ser capturado pela experiência aterradora que é Não! Não Olhe!.
NOTA: 10/10
Leia também: Crítica | Dupla Jornada – Diversão à moda antiga
Já conhece nosso canal do YouTube? Lá tem vídeo quase todo dia. Se inscreve! Dá uma olhada no nosso vídeo mais recente:
Aproveite para nos acompanhar nas redes sociais: Facebook, Twitter, Instagram, Youtube e também no Google News.
Quer receber notícias direto no seu celular? Entre para o nosso grupo no WhatsApp ou no canal do Telegram.