Crítica | Medida Provisória – Poderoso manifesto antirracista de Lázaro Ramos

Às vezes vamos ao cinema para comer pipoca e mergulhar em mundos impossíveis – que só são possíveis nos filmes – porém, para além do entretenimento apenas, o cinema também se posiciona como um forte manifesto de reflexão, uma carta aberta ao público sobre assuntos que somente a arte pode tocar na ferida com o intuito de fazer curar. E Lázaro Ramos, que cresceu no audiovisual, sabe bem disso quando cria nas telas seu Brasil distópico de Medida Provisória – filme nacional que chega aos cinemas em breve após sofrer diversas censuras por parte do governo Bolsonaro.

Ao invés de navegar em mundos improváveis, a realidade nua e crua de um futuro assustadoramente possível serve de palco para uma trama poderosa, por vezes asfixiante, em mais uma obra importante do cinema brasileiro que ousa dar nomes aos bois, ou nesse caso, aos gados, se é que me entende.

Angustiante e incrivelmente comum, o roteiro do filme é tão didático e cirúrgico no que se propõe fazer, que nos faz rir de nervoso por imaginar que esse tal futuro, na verdade, nunca deixou de existir. Ainda que seja uma trama adaptada do teatro de 10 anos atrás, segue mais atual do que nunca, afinal, racismo, intolerância e genocídio parecem acompanhar a história do Brasil.

De qualquer forma, nas telonas, o enredo funciona que é uma beleza e toma a liberdade de seguir por caminhos impactantes, no mesmo nível de produções como The Handmaid’s Tale, Black Mirror e até mesmo Corra!, ou seja, a jornada não é fácil de ser acompanhada, gatilhos emocionais são ativados e o exercício de empatia se estende para todas as cores, uma vez que Ramos deixa bem claro que a vilania não vem dos brancos em si, mas sim, daqueles que estão no poder.

A trama e o elenco

Por ser uma adaptação para os cinemas de Namíbia, Não!, peça de Aldri Anunciação (que Lázaro Ramos dirigiu para o teatro em 2011), há alguns maneirismos típicos de outros formatos e a parte inicial do filme acaba por se perder na agitação de apresentar todo o contexto em que a trama irá se desdobrar. No enredo, temos um Brasil como o de hoje – com algumas tecnologias a mais – mas num futuro próximo, onde as pessoas de pele preta são chamadas de “melanina acentuada” e separadas do restante da sociedade por conta de uma decisão do governo de fazer uma “reparação histórica” pelo passado escravocrata, provocando uma reação no Congresso Nacional, que aprova uma medida que obriga os cidadãos negros a migrarem para a África na intenção de retornar a suas origens. É sério!

Nesse contexto sinistro, pretos são caçados e até mesmo mortos em prol de colocar a medida em vigor e “livrar o Brasil da raça negra”. A aprovação afeta diretamente a vida do casal formado pela médica Capitú (Taís Araújo) e pelo advogado Antonio (Alfred Enoch, de Harry Potter), bem como a de seu primo, o jornalista André (Seu Jorge fazendo dobradinha em dois filmes que deixa Bolsonaro revoltado!), que mora com eles no mesmo apartamento.

Nesse apartamento, os personagens debatem questões sociais e raciais, além de compartilharem anseios que envolvem a mudança de país. O elenco, por sua vez, entrega naturalidade e atuações impactantes. Os três personagens centrais possuem, cada um, seu momento de brilhar na frente das câmeras – destaque para uma cena emocionante com Araújo em um banker abrigado por negros ameaçados e pela força da performance fantástica de Enoch, definitivamente um dos melhores atores de sua geração. Vale também ressaltar o trabalho de tirar o fôlego de Adriana Esteves, mais uma vez dando vida a uma vilã irritantemente comum à todos nós.

O forte discurso racial – ainda que, claro, seja o centro de toda a narrativa – por vezes abre espaço para momentos doces de romance do casal, sequências de puro terror à la Jordan Peele e até mesmo diálogos sobre questões do nosso dia a dia, com piadas e comentários intolerantes vindos de pessoas brancas que pregam o antirracismo – especialmente na terra sem lei que é o mundo virtual.

O roteiro é eficaz em evidenciar que isso é algo que está intrínseco em todos nós – reflexo de uma sociedade presa em seu passado escravocrata – e que a única forma de mudarmos é exercitando a autocorreção. Esse passeio por diferentes gêneros, ainda que divertido, acaba por deixar a trama levemente inchada, assim como atrapalha o ritmo na primeira metade do filme. Apesar de coeso em sua premissa, o longa dá muitas voltas para chegar aonde precisa estar.

A direção

Por outro lado, a história é tão densa, rica em detalhes e interessante, que renderia uma ótima minissérie, algo que ajudaria o ritmo a se desenvolver melhor, assim como a jornada de cada um dos personagens e suas camadas. Lázaro Ramos, sendo astuto como é, conduz com maestria e sabe exatamente o que deseja alcançar e provocar no público – o diretor cria uma coerência fantástica entre o humor sarcástico e o horror daquela situação absurda – sem contar a atmosfera de medo que adentra. Porém, há alguns problemas.

Por vezes, o filme parece perder o senso de orientação, cai em algumas repetições, cortes estranhos e não explora todo o seu potencial como uma narrativa cinematográfica, talvez por conta do orçamento ou mesmo pela falta de afinidade de Ramos com certos aspectos da direção. Mas nada tão sério que possa afetar o envolvimento do espectador, apenas uma maior atenção aos detalhes e lapidação de excessos teria deixado o resultado ainda mais satisfatório, já que todas as demais engrenagens funcionam a todo vapor, incluindo a trilha sonora.

Conclusão

Um filme significativo para um ano importante de eleição presidencial, com Medida Provisória, Lázaro Ramos brinca de futuro distópico para falar o que todos tem medo de dizer sobre o Brasil de hoje. Seu poderoso manifesto antirracismo é provocativo, sombrio e único dentro do cinema nacional. Não é à toa que tem incitado ódio (ou seria medo?) naqueles que querem distorcer a realidade. Quando a arte desafia os gigantes e é censurada para se calar, é quando precisamos fazer ela ecoar.

E muito além de suas pautas raciais e a reflexões cirúrgicas – que servem quase de profecia sobre os rumos que o ressurgimento da política de extrema direita pode alcançar – o filme proporciona entretenimento, além de uma jornada emocionante – carregada de humor e momentos de suspense – pontuada por atuações espetaculares e uma direção engenhosa, por vezes desorientada, mas que sabe a ferida exposta que deseja tocar.

Num país de memória tão curta como o nosso, esquecer que houve ditadura e escravidão é pertinente. Felizmente, o cinema está aqui para nos lembrar. E Medida Provisória não apenas lembra como também educa, expõe e unifica a cultura brasileira num harmônico: Chega de eleger racista!

NOTA: 9/10

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