Coincidência ou não, no ano em que a tão comentada redação do Enem surpreende ao ter como tema invisibilidade e registro civil, o cinema nacional ganha um de seus filmes LGBTQIA+ mais importantes dos últimos anos – e que parcialmente aborda questões como identidade de gênero e exclusão social – para estender o assunto para outras vertentes e abranger esse guarda-chuva de possibilidades quando se trata de narrar vidas omitidas, ignoradas e, por vezes, taxadas de sem valor dentro do país que mais assassina pessoas LGBTQIA+ do mundo. De fato, Deserto Particular – longa escolhido para representar a arte brasileira no Oscar 2022 – igualmente surpreende por seu teor afiado de reflexões relevantes, mas que, ao mesmo tempo, proporciona um road movie com substância, que transpira Brasil em cada quadro capturado pelo olhar aguçado e visionário do cineasta Aly Muritiba.
Esse manifesto sobre o impacto da masculinidade tóxica mergulha num romance proibido na busca por encontrar um oásis de conforto dentro do deserto árido e espinhoso do tema proposto que, nas mãos do roteiro astuto, está longe de ser improdutivo. Mas será que possui força o suficiente para chegar tão longe e conquistar uma tão desejada estatueta?
A trama e o elenco
Bom, ganhar é questão de ponto de vista. Por vezes cobiçamos tanto um impacto internacional para o nosso cinema, que esquecemos como nossa arte e cultura primeiro precisa ser vista, apreciada e valorizada pelo público nativo, afinal, obras recentes como Deserto Particular – e tantas outras – exploram as paisagens singulares de um Brasil que clama por atenção e que prova a força que nossos realizadores possuem em contar histórias penetrantes. Ter nosso chão como palco para tanta profundidade e qualidade visual, certamente é mais valioso que um Oscar pegando poeira numa estante qualquer.
E em quesito atributo, este longa faz e faz com maestria. Desde sua impecável fotografia até a densidade da trama e as personagens bidimensionais, tudo funciona como uma engrenagem perfeita nas mãos da direção que sabe onde deseja chegar e o tipo de público que anseia por alfinetar.
No enredo de Deserto Particular, conhecemos primeiro o machão, solitário e reprimido policial Daniel (vivido pelo excelente Antonio Saboia) em uma introdução de mais de 30 minutos até a chegada de sua eventual viagem em busca de um amor que habita o outro lado do país.
Como uma colisão de mundos tão distintos e polarizados – algo que dialoga perfeitamente com a pluralidade do Brasil -, a trama acompanha tanto a trajetória do protagonista e suas nuances duvidosas, que acabam por se transformar em uma jornada pessoal de autodescoberta e manifestação sexual, quanto o universo asfixiante de um jovem queer (vivido pelo talentoso Pedro Fasanaro) de uma pequena e conservadora cidade do interior da Bahia que sonha em ser livre como as águas de um rio.
Do sul ao nordeste, a trama reflete sobre a absurda “cura gay”, a carga de masculinidade colocada sob os ombros de homens desde a infância e como o amor em si não possui rótulos.
Para tamanha profundidade neste mergulho, Antonio Saboia esbanja charme e carisma em um personagem carregado de dúvidas, traumas e preconceitos incrustados. Por vezes durão e auto sabotador, por vezes doce e entregue à um amor que o desafia a ser alguém superior ao homem ignorante que é. Assim como a performance deliciosa e comovente de Pedro Fasanaro.
A dupla proporciona uma espécie de mesa de debate sobre como gênero e orientação sexual são coisas diferentes e podem (ou não!) andarem entrelaçadas. Mesmo com momentos tensos e diálogos de cortar o coração, há uma calorosa tensão sexual presente e cenas verdadeiramente quentes – feitas com respeito à comunidade LGBTQIA+ – que não são apenas softporn gratuito de novela das nove para preencher as lacunas da temática. Muito pelo contrário, há uma dose de carinho, desejo e precaução que torna esses momentos responsáveis.
A direção
O trabalho de Muritiba, por sua vez, alcança um novo e ambicioso patamar, mesmo após obras ótimas como Ferrugem e O Caso Evandro. O diretor cria um ambiente solar, imersivo e quase distópico através de seus contemplativos planos, incluindo longas sequências de diálogos em que a câmera capta cada nuance de sentimento extraído do elenco, além dos belíssimos cenários em planos gerais, amarrados pela direção de fotografia erótica e marcante de Luis Armando Arteaga, um verdadeiro exercício de amor à estética cinematográfica.
Além disso, há uma visível preocupação do cineasta em criar essa narrativa instigante e, ao mesmo tempo, repleta de metáforas, cores e composições singulares, muito semelhante a obras estilosas e profundas como o drama chileno Uma Mulher Fantástica. Da trilha atmosférica à montagem, que privilegia o ar melancólico e constrói a narrativa que queima aos poucos, toda a parte técnica segue primorosa e feita para ser assistida na maior tela possível.
Conclusão
Dessa forma, Aly Muritiba reflete sobre masculinidade tóxica, conservadorismo, hipocrisia e repressão sexual em seu comovente Deserto Particular, drama que eleva a qualidade do cinema brasileiro a um patamar de brilhantismo, ousadia e provocação. Indiscutivelmente, um dos melhores filmes de 2021. Ainda que lento para alguns públicos, esse romance atmosférico, por vezes solar, por vezes denso e melancólico, definitivamente sai de sua zona de conforto para constatar que o amor é um oásis, uma ilusão tão poderosa que é capaz de transformar preconceito, intolerância e ignorância na água mais pura e natural do deserto.
Nota: 9/10
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