Crítica | Soul – A Pixar em seu auge de maturidade e excelência

A cada novo projeto desenvolvido com carinho e minuciosidade, a Pixar se supera triunfantemente em todos os aspectos propostos. Seja na evolução gradativa da qualidade das animações, cada vez mais realistas, ou nos assuntos profundos que escolhe abordar em seus filmes. Já faz algum tempo que as obras do estúdio não são voltadas exclusivamente para as crianças (se é que um dia foram), ainda que, majestosamente, funcionam com perfeição entre esses dois mundos. Dessa ascensão ao patamar de fazer uma obra-prima após a outra e condizente com o ano que se passou, marcado pelo importante avanço da cultura negra e de movimentos antirracistas na indústria do cinema, chega as telinhas do Disney+ a que talvez seja sua obra mais madura até então, Soul, também conhecida como a personificação da excelência de tudo que a Pixar pode proporcionar.

A trama e o elenco

É quase redundante dizer que uma obra da Pixar atinge o topo de algo muito mais profundo e reflexivo do que a diversão que vemos em tela. As duas camadas sobrepostas, uma para as crianças e a outra para os mais velhos, funcionam deliciosamente e proporcionando diferentes entendimentos sobre cada elemento apresentado, porém, com um plus maravilhoso: Soul ainda possui uma terceira (e até então inédita no estúdio) camada, voltada para a comunidade negra e repleta de referências pontuais, que prestam o favor de reafirmar para todas as idades que a diversidade existe e, mais que isso, que uma criança negra se ver representada na tela de um filme desse porte é o maior legado que o estúdio pode deixar para as gerações futuras.

Os personagens, majoritariamente negros, ganham voz ativa e o roteiro trabalha de forma didática e bastante eficaz a importância do Jazz para o movimento negro e a profundeza de sentimentos que vem anexados com a música que, por si só, existe para ecoar realidades que os livros de história, escritos por brancos, omitiram por tantos séculos. Essa nova aposta do maior estúdio de animação do cinema vem tardia, mas ao menos veio com sensibilidade e, seja para expressar o poder da música ou em como retrata religião e espiritualidade, é perceptível o trabalho afetuoso da produção em fazer algo direto e sem firulas, mas encharcado de ensinamentos condizentes.

O roteiro de Soul pega o conceito de fé e religião e dele extrai sua essência mais pura: o valor que damos a vida. Dessa essência, faz nascer uma trama doce sobre Joe (dublado por Jamie Foxx), um desacreditado professor de Jazz que ama fazer música, mas que não está feliz com os rumos que sua vida pacata e solitária havia tomado. Nas vésperas de realizar o seu maior sonho – tocar em uma banda aclamada de Nova York – ele se vê entre a vida e a morte por conta de um acidente e parte para outra dimensão, para conhecer como é existir antes mesmo de sua existência e para onde vão todas as almas perdidas, ao lado de sua aprendiz: a esperta 22 (interpretada pela hilária Tina Fey). Nessa experiência, ele aprende o valor de viver e a importância de fazer a diferença no mundo dos vivos. E é com essa tremenda sensibilidade que a trama constrói uma divertida e esteticamente singular jornada, que lida com temas densos, como morte e reencarnação, mas com a simplicidade única do olhar de uma criança sobre esses argumentos.

A direção, protagonista e música

A potência Pete Docter, diretor das obras mais sentimentais da Pixar, como Up: Altas Aventuras e DivertidaMente, assume Soul com todo seu coração e entrega a obra que certamente reúne, com mais precisão, toda a sua ternura em como tratar assuntos importantes com a linguagem mais doce possível. Além disso, dessa vez o protagonista não é uma criança, mas sim um homem de meia idade, algo raríssimo em animações, mas que funciona perfeitamente dentro desse contexto criado e equilibrado pela presença de uma “alminha” com espírito jovem e um gato com suas peculiaridades. Joe é um adulto que ainda não se encontrou na vida e que vive com as críticas constantes de sua mãe rígida, que não apoia seu amor pela música e não acredita que esse sonho possa pagar boletos, pois ela sabe o quão sofrido foi para o pai de Joe vencer no ramo e precisar escolher entre ser feliz ou ter dinheiro para sobreviver mais um dia.

Através desse personagem complexo e incomum para um filme infantil, a animação extrai todos os seus valores e sentimentos e constrói um protagonista sólido, melancólico e que dialoga diretamente com todas as idades. Fora esse olhar criativo, o longa ainda chama atenção pela trilha sonora impecável, que mescla o clássico do Jazz com uma pegada contemporânea, feita pelo músico Trent Reznor, e a minuciosidade dos detalhes dos cenários, dos figurinos e da textura de cada cena. A estética neon e as inusitadas e artísticas formas de animação 3D são diferentes de tudo que já vimos e, assim como o recente Homem-Aranha No Aranhaverso, cada cor explode em linhas multicoloridas de encher os olhos.

As lições que aprendemos pelo caminho

De forma revigorante, o roteiro direciona para as crianças perguntas como “o que acontece quando morremos” de forma divertida e lúdica, repleta de simbolismos e que ainda deixa espaço para interpretações próprias durante a formação de pensamento sobre sua existência e sobre o conceito de morte. Ou seja, é assertivo em não ditar regras ou propor explicações baseadas no cristianismo, já que seu foco, acima de qualquer coisa, é mostrar que não existe a tal “vocação” e que nós nos descobrimos ao longo da vida, mesmo que leve mais tempo para alguns.

Muito mais do que um filme sobre ideais do espiritismo, como muitos podem acusar, a mensagem central de Soul é sobre aproveitar e apreciar sabiamente o tempo que possuímos vivos, assim como buscar fazer o nosso melhor para tornar o mundo ao redor um lugar com mais empatia e compreensão. Enquanto faz rir, fala de Jazz e vida após a morte, também serve para refletir sobre racismo, solidão e o que vem depois que alcançamos nossos sonhos.

Conclusão

Da mesma forma que o corpo é um receptáculo da alma, Soul é o abrigo das metáforas mais potente dentro das animações desse século e, como podemos esperar, é brilhante, bonito e comovente emocionalmente. Com mais essa obra-prima, a Pixar apresenta maturidade em suas narrativas, dialoga com a diversidade e prova, de uma vez por todas, que seu poder em oferecer entretenimento excepcional para todas as idades permanece inabalável. Prepare-se para chorar, se reerguer e explodir seu coração de amor com essa história humana e sensível, que nos faz lembrar que, quando esse tempo difícil em que vivemos finalmente passar, a vida é agora e está florescendo lá fora.

Nota: 10/10

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