Certamente, o cinema tem como uma de suas funções, não permitir que lendas sejam esquecidas e que os personagens relevantes da vida real possam permanecer conosco mesmo após sua história se encerrar. Os filmes biográficos têm esse poder de influência no espectador, ao mesmo tempo em que carrega o importante fardo de contar uma história verídica, da forma mais honesta possível. E o Brasil, especialmente, esquece com facilidade figuras históricas que se tornaram pontos cruciais para que nossa história seja perpetuada. Uma dessas figuras, sem dúvida, é Sérgio Vieira de Mello, diplomata brasileiro, representante da ONU, que passou a atuar em diversas missões humanitárias, até falecer em 2003, vítima de um atentado terrorista ao hotel onde estava hospedado, em Bagdá. Ele é também a personalidade central de ‘Sergio’, novo drama da Netflix.
O longa, dirigido por Greg Barker (que já havia feito um documentário sobre Sérgio em 2009), estabelece o terreno em um Iraque no auge de seu maior conflito com os EUA, após os atentados de 11 de Setembro, bem no centro da “Guerra ao Terror”. Essa ambientação, logo de início já divide a trama em duas linhas temporais: Sergio preso nos escombros do hotel após a explosão e Sergio “passando sua vida diante dos seus olhos”, cujo roteiro, baseado no livro ‘O Homem Que Queria Salvar o Mundo’, da autora Samantha Power, utiliza esse artifício para revisitar seu passado e sua trajetória até então. Se por um lado, a trama, repleta de imagens de arquivo para dar mais atmosfera à história, mostra alguns feitos marcantes de Sergio, por outro, intercede com uma subtrama de romance, que diverge a atenção e desfoca a importância do diplomata para o mundo.
E é esse desequilíbrio que empobrece a história, ainda que os momentos dramáticos sejam fortes e a atriz em ascensão Ana de Armas (Entre Facas e Segredos) tenha uma presença marcante, o uso excessivo do vai e vem entre o romance da personagem com Sergio, mostra que o roteiro não consegue se decidir se deseja ser um documentário ou um drama biográfico na vibe enérgica do diretor Adam McKay (de ‘Vice’ e ‘A Grande Aposta’) ou um filme de romance de guerra, ao melhor estilo ‘Querido John’. As duas vertentes são boas, tem seus pontos altos, mas não funcionam quando são colocadas juntas. A história quer apontar que Sergio é considerado “a revolução do mundo”, mas o que vemos na prática é uma fração bem precária desse poder, exatamente pelo fato do roteiro desenvolver, com mais vigor, a parte romântica do que a política em si.
Apesar disso, Wagner Moura (‘Tropa de Elite’, ‘Narcos’) segue invicto como uma das grandes joias da dramaturgia nacional. Seu trabalho está excepcional, emotivo e muito mais centrado do que de costume. Se já é um desafio atuar em português, imagina em inglês e espanhol ao mesmo tempo? De longe, o ponto alto do filme, apesar de não haver tantas nuances dramáticas em sua performance, problema, mais uma vez, de um roteiro que desperdiça boas oportunidades. A direção de Barker começa ritmada, apressada e confusa, com seu excesso de cortes, mas depois se acalma e a narrativa fica mais agradável e sensível, tanto, que se arrasta do meio para o final bem lentamente, à ponto de ser repetitiva, pelo uso de flashbacks do passado do protagonista e cenas que acabam se estendendo além de necessário, como imagens do mar do Rio de Janeiro, por exemplo.
A ambientação de época é boa e a direção de arte reconstrói o começo dos anos 2000 com bastante energia, seja no Rio de Janeiro ou em Bagdá, locais por onde a história se passa. Por conta dos cenários, a imersão é caprichada, mas a ausência de impacto dramático é também um problema enfrentado pelo diretor. Como o recorte de um período específico do personagem é também o momento do fim da sua vida, o que acontece com outro filme, ‘Judy’, sobre os últimos anos de vida da atriz Judy Garland, também acontece aqui: falta um mergulho profundo em sua origem, desde a sua infância, para que possamos nos identificar com o poder de seu trabalho. Dessa forma, para quem nunca ouviu o nome de Sergio, a absorção de seu carisma e influência no mundo será bem menor, assim como o impacto de sua morte repentina.
Com isso, ‘Sergio’ tem muito a dizer, mas se perde em suas próprias referências. Uma figura maior e mais importante do que o precário reflexo visto na trama, que não sabe se deseja ser um drama biográfico ou um filme de romance de guerra. Ainda assim, a performance impecável de Wagner Moura conquista e entretém, mesmo que pudesse ser muito mais impactante que apenas isso. Não é um filme ruim, apenas divergiu a emoção pelo caminho e não soube aproveitar as nuances do ótimo personagem.