Definitivamente, o thriller psicológico espanhol ‘O Poço’, um dos maiores sucessos recentes da Netflix, é também um daqueles filmes que exigem uma reflexão mais aprofundado após ser assistido. As respostas não são dadas com facilidade e o roteiro se constrói em torno de inúmeras metáforas, sendo as mais evidentes a desigualdade social, a luta de classes e a fome. Porém, conforme mergulhamos mais e mais em suas entranhas, há muito escondido do que um simples filme de terror convencional.
Partindo do princípio de que você já assistiu o filme, à seguir iremos debater as alegorias e metáforas do final. Cuidado com spoilers.
Confira a explicação no vídeo abaixo e também no texto a seguir:
Ideal para épocas de distanciamento social: Grande parte da trama mostra Goreng (Iván Massagué) tentando fazer com que os mais necessitados possam receber comida da mesma forma que os prisioneiros do topo. Com isso, a mensagem de solidariedade e empatia repercute com bastante força, sendo um filme ideal para se compreender o significado de comunidade em épocas de pandemia, como a que estamos vivendo nesse momento. Apesar do filme ter sido realizado em 2019 e somente agora ter sido comprado e lançado pela Netflix, é interessante observar como sua premissa se encaixa e dialoga com nossa atual situação. Sem dúvida, uma coincidência bizarra do destino.
Há três tipos de pessoas: Sabemos que há exatamente 666 pessoas residindo no lugar, pois possui 333 andares e cada andar é ocupado por apenas duas pessoas. Logo no começo ouvimos a importante frase de que existem três tipos de pessoas: as que estão no topo, as que estão abaixo e as que caem. Ou seja, as que estão contentes com a situação, as que estão abaixo e não podem fazer nada para mudar e as que descem voluntariamente para promover mudanças, como faz o protagonista em sua jornada. O personagem entrou no presidio de forma voluntária, tanto para conseguir seu diploma da faculdade, quanto para tentar parar de fumar. Durante sua estadia, percebe o sadismo do jogo e conhece pessoas que estão presas ali por cometerem crimes medianos. No final, quem sobreviver a luta por comida ganha um “prêmio”, diferente para cada indivíduo. Na realidade, as pessoas fazem parte de um experimento social, possivelmente governamental, e precisam decidir qual tipo de pessoa será dentro do jogo e, segundo algumas pistas dadas pelo roteiro, o objetivo do jogo é ver como nascem as revoluções e como resultam no que uma personagem chama de “solidariedade espontânea”, se é que isso realmente existe.
Dom Quixote: Cada prisioneiro pode levar apenas um item para o lugar e o protagonista, Goreng, decide levar um livro do Dom Quixote. Essa referência é perfeita para a construção do personagem. Além de parecer fisicamente com Dom Quixote, sua jornada no poço é similar a jornada do icônico personagem da literatura, que sempre foi avançado para sua época, por mostrar as diferenças de classes e os privilegiados. O roteiro do filme mostra que os prisioneiros que estão acima, ou seja, os privilegiados, pouco se importam com os de baixo… uma perfeita alegoria para o sistema da sociedade e como os mais ricos possuem vantagens sobre os mais pobres. Até mesmo os terríveis atos canibais são justificados pelo personagem Trimagasi como “racionais”, já que diz que não é ele que está fazendo, mas sim está sendo obrigado a fazer por conta das pessoas acima, o sistema, ou seja, mais uma metáfora ao mundo real, onde pessoas são abrigadas a cometer crimes muitas vezes para poder sobreviver.
Referências bíblicas e a faísca da revolução: Muitos estão interpretando como se o protagonista fosse uma espécie de Messias, que precisa levar a mensagem de solidariedade até o final para fazer a diferença, porém, como podemos ver na análise, faz mais sentido que ele seja uma versão inspirada em Dom Quixote e um agente revolucionário que luta contra o sistema, muito mais que uma figura bíblica, ainda assim, há sim metáforas sobre os pecados capitais, principalmente sobre a gula. A criança que vemos no final do filme é a tal mensagem (colocada ali de propósito ou não, não faz diferença), que precisa chegar até seu destino (no topo, na administração do lugar) para criar a tal revolução que mudará todo o sistema, já que sua presença fará com que as pessoas do lugar possam trabalhar juntas por um objetivo comum e não mais por sobrevivência e ganhos pessoais. A menina é a pedra que deverá parar a engrenagem e o protagonista é o agente, o líder, que precisa fazer com que isso aconteça.
Ou seja, a trama, na verdade, é uma jornada filosófica sobre como nós funcionamos como sociedade e como agimos em um ambiente em que devemos trabalhar juntos para promover mudanças.