O cinema encanta. Histórias imersivas preenchem nossa visão e nos mantém presos naquele mundo imaginário por quantas horas forem necessárias. Essa é a função de um bom filme, de uma trama que precisa do nosso mergulho de cabeça para atingir memórias e sensações escondidas em cada um de nós. E é sobre memórias que trata o roteiro adaptado do livro ‘A Vida Invisível De Eurídice Gusmão’, da autora Martha Batalha, transportado para as telas como ‘A Vida Invisível’, já que o longa divide seu protagonismo entre as duas irmãs de forma equilibrada. A excelente safra do cinema nacional acaba de ganhar um capítulo ainda mais doce e surpreendente, com esse longa dirigido por Karim Aïnouz (Praia do Futuro), que vale à pena ser destrinchado até sua essência.
A trama, carregada de nostalgia, se situa na década de 1950 e acompanha duas irmãs, Eurídice (Carol Duarte), jovem prodígio que sonha em ser uma pianista de sucesso, e Guida (Julia Stockler), seu oposto, cujo maior sonho é se casar com um estrangeiro e deixar o tropical Rio de Janeiro. Mesmo que diferentes em ideologias, elas são unidas por um amor incondicional que atravessa o tempo. Ambas são os pilares de sustentação da trama, que divide em duas vertentes, para cruzar suas histórias e, dessa forma, mostrar como foi a vida de uma sem a outra. Essa premissa se desenrola em camadas emocionais profundas e situações de solidão e angústia, construídas com maestria pelo roteiro de Murilo Hauser, que sabe o momento exato de fazer match cuts para caminhar entre as duas vidas retratadas.
Além do roteiro excelente, a direção de Karim Aïnouz compreende a energia da trama, a magia única dos anos 50 e trabalha seus planos aproximados nos rostos das atrizes, sequências mais longas, para causar tanto desconforto quanto empatia e, além disso, sabe o momento de afastar a câmera para tornar a cena o mais distante e desprezível possível, como as sequências intensas de sexo. Toda a vibe do filme, desde sua direção de fotografia com muita luz natural, até seu figurino espetacular, explora a Era de Ouro do cinema nacional, como se o filme em si não fosse feito nos dias de hoje, mas a destreza está exatamente na perspicácia de ser uma obra de época, realizada com o olhar pontual de 2019 e da essencial era “Me Too”, afinal, a visão delicada e sensível de Aïnouz consegue teletransportar a empatia, a alma do livro e seu pontual discurso feminista para as telas.
Curiosamente, todos os homens do filme são, de alguma pequena maneira que seja, vilanizados. E isso, além de proposital, é necessário. Nosso olhar, em especial masculino, pode ver tais personagens com excesso de agressividade, mas é exatamente sobre isso que a obra trata, sobre dar voz ao ponto de vista feminino em uma época (não tão distante) em que o machismo estava enraizado com absoluta força, e que ser mulher não poderia significar ter sonhos ou desejos além de ser mãe e dona da casa. Apesar da opressão ser a semente que dá vida e contextualiza a história, o roteiro consegue usar esse tema com brilhantismo, com exemplificações até mesmo didáticas e sem se tornar maçante ou feito apenas para se encaixar na atualidade, ainda que, de fato, se torne parte disso.
E para sustentar tamanha carga emocional proposta, as atrizes protagonistas foram as escolhas perfeitas. Duarte e Stockler se completam e se equilibram em performances absolutamente impecáveis. Olhares singelos, sorrisos e até explosões de raiva são trabalhadas com dedicação pela dupla e bem dirigidas por Aïnouz, que dá liberdade para também improvisarem. Duas atrizes talentosíssimas, com veracidade na atuação, que certamente ganharão mais espaço daqui pra frente. E, claro, a dupla estabelece terreno para a majestosa Fernanda Montenegro (Central do Brasil) aterrissar no 3º ato da trama e, como de costume, roubar a cena no momento mais emotivo. Gregório Duvivier vive a personificação do sexo masculino insuportável e moldado pela sociedade patriarcal da época. O ator, que traz também o alívio cômico consigo, cumpre sua função de exemplificar esse modelo de homem, presente até hoje em muitas famílias.
Dessa forma, com todos os elementos alinhados e funcionando, a narrativa toma o tempo necessário para contar a história no ritmo que os eventos precisam impactar o espectador, seja através da morte de uma personagem querida ou dos desafios diárias das mulheres. O que pode parecer lento para alguns públicos, pode ser profundamente imersivo para outros. A narração em off de Guida auxilia nessa passagem de tempo e na criação do sentimento de aflição e suspense, por imaginar se suas cartas um dia serão lidas pela irmã, mesmo que ambas estejam vivendo na mesma cidade durante toda a vida. As locações em Santa Teresa, São Cristóvão e no centro do Rio de Janeiro provocam melancolia através do ar novelesco, que deve conquistar até mesmo quem não cresceu e não está familiarizado com essa cidade vista como maravilhosa, fruto de uma falsa imagem de liberdade.
A adaptação de ‘A Vida Invisível’ se transforma em uma poesia sobre a saudade. É um filme doce, gentil e emocional, que dialoga diretamente com os tempos atuais, ao mostrar o papel imposto pela sociedade na mulher do século passado, suas lutas para viver seus sonhos e fugir do opressor sistema patriarcal. Mais bem-vindo que isso, impossível. É o Brasil inserindo-se nas mudanças, com um trabalho primoroso, que também pode nos dar o gostinho de chegar ao Oscar mais uma vez. Fecha o ano com chave de ouro no cinema brasileiro e, certamente, se consagra com o melhor filme dessa temporada ao lado de ‘Bacurau’.