Crítica | Maré Alta – Uma onda de amor e dor que arrasta tudo pelo caminho

Sabe aquela sensação de que a vida está passando diante dos seus olhos, como se você fosse apenas um espectador, sem saber como ou sequer se pode interferir? Essa angústia é ainda mais intensa para o homem gay na casa dos 30. A crise da vida adulta, a dificuldade em construir conexões verdadeiras em uma era de sexo descartável, a solidão de não se sentir pertencente — nem mesmo quando achava que, ao crescer, finalmente encontraria seu lugar. Olhar para a idade que seus pais tinham quando você nasceu e se perguntar onde foi que você ficou para trás, sem corresponder às expectativas deles.

Essas questões atravessam o drama LGBT+ estadunidense Maré Alta (High Tide), estrelado por um brasileiro e dirigido por um italiano, que escancara uma verdade dolorosa: quando o amor perde a adrenalina, o que fica é um rastro de destruição, como um tornado de categoria 5. O filme mergulha no clichê do “drama gay”, mas o faz com uma honestidade desarmante, afeto genuíno e um estilo cinematográfico refinado. Uma surpresa que vai direto no coração.

Os acertos e erros do filme

Maré Alta não é um filme simples. Com um drama adulto e um recorte preciso de uma fase da vida em que um homem ainda busca seu caminho, o longa do italiano Marco Calvani segue um ritmo próprio, sem jamais se tornar cansativo. Calvani conduz uma montanha-russa emocional, contrastando sentimentos intensos com paisagens solares deslumbrantes, enquanto narra uma jornada de autodescoberta e a busca por um lugar onde seja possível finalmente se sentir pertencente.

Após deixar o Brasil para viver com o namorado nos Estados Unidos, Lourenço (Marco Pigossi) vê seus planos desmoronarem. Abandonado pelo parceiro, longe de casa e com o visto prestes a expirar, ele conhece Maurice (James Bland), um americano carismático que o força a encarar seus medos e se reconstruir em meio às cicatrizes das frustrações. Daí, nasce um novo amor genuíno, inesperado e devastador.

O roteiro mergulha em uma melancolia densa e uma solidão cortante, reforçadas por uma fotografia lavada e intencionalmente sem vida e uma trilha constante, que traduz o peso dessa história de amor complexa. Há quem diga que relacionamentos homoafetivos são mais simples, mas a verdade é que eles carregam inúmeras camadas. Lourenço se vê rejeitado por alguém que ama, deixado sozinho em uma terra estrangeira — e, ainda assim, sabe que voltar para casa não seria fácil. Sua mãe, extremamente religiosa, ainda não sabe (e provavelmente jamais aceitaria) que ele é gay.

Entre a faxina de uma casa e noites de sexo sem afeto, tudo o que Lourenço parece desejar é ser levado pelo mar — para longe, para algum lugar que finalmente possa chamar de lar. Para quem não acompanha a carreira de Marco Pigossi para além do galã, sua atuação será uma revelação. Ele se entrega ao papel de corpo e alma, com um olhar carregado de um universo de sentimentos, transmitindo a fragilidade de um cachorro abandonado e a profundidade de quem carrega uma dor silenciosa. É difícil não se emocionar.

A relação entre Pigossi e o diretor — que também é seu marido — adiciona uma camada extra de intimidade e autenticidade à obra, potencializando os sentimentos e as verdades que o filme busca explorar. James Bland, no papel do doce e naturalmente sedutor Maurice, é uma peça-chave para o funcionamento da narrativa. Sem ele, o filme certamente perderia parte de sua força.

Bland ainda traz uma camada poderosa ao abordar o racismo em conversas que tornam o filme ainda mais impactante e relevante. Sem falar na química explosiva entre Bland e Pigossi — a tela praticamente pega fogo com uma nudez discreta, mas carregada de afeto e desejo.

Calvani demonstra domínio técnico na direção, com belos planos-sequência, diálogos afiados e um controle preciso do ritmo. Em vários momentos, o filme lembra a cinematografia de Luca Guadagnino — especialmente em Me Chame Pelo Seu Nome e Queer — seja pelo uso das paisagens ensolaradas ou pela representação da solidão do homem gay. Essa homenagem sutil é perceptível e funciona bem, criando um diálogo elegante entre as obras, como se compartilhassem um mesmo código emocional, compreendido apenas por quem já viveu essas histórias de amor de verão.

Com mais de 95% dos diálogos em inglês, Maré Alta preserva a essência do cinema LGBT+ brasileiro — evocando o realismo cru de Baby e Praia do Futuro —, mas com um toque de charme do cinema estrangeiro, que reforça o isolamento social e emocional do protagonista, aproximando o público de sua jornada interna.

Apesar disso, alguns núcleos não funcionam tão bem ou não têm tempo suficiente para se desenvolver, como o da ótima Marisa Tomei, um suporte maternal para o protagonista, cujo talento acaba sendo subaproveitado. Sua presença é marcante (como sempre!), mas a falta de profundidade no desenvolvimento de sua personagem deixa a sensação de que seu potencial foi desperdiçado.

Veredito

Em certo momento, um personagem diz que, quando decidimos ir embora, instantaneamente encontramos um motivo para ficar. E essa é exatamente a sensação que Maré Alta provoca — uma vontade de permanecer ali, mergulhado na história, nos personagens, de ver mais, saber mais e se deixar levar por esse oceano de amor honesto, dor crua e melancolia.

É um filme doce, sexy, mas também um drama adulto gay que não hesita em partir seu coração em pedaços. Porque, no fim, não é assim que a vida funciona? Às vezes, é preciso se destruir para reconstruir algo a partir das ruínas.

Marco Pigossi se firma como um ator brasileiro de peso em uma carreira internacional promissora. Maré Alta é um filme de verão com alma melancólica, ecos de Luca Guadagnino e uma honestidade emocional que ressoa mesmo depois que a maré baixa.

NOTA: 9

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