É quase irônico que, tão logo após a Netflix lançar The Eletric State, um dos maiores enlatados já concebidos pela gigante do streaming, a mesma apresente algo do naipe de Adolescência, sua nova minissérie em 4 capítulos que, não é equivocado afirmar, chega como a nova Bebê Rena da marca audiovisual.
E não somente pelo fato de ser uma série limitada que se conclui em si mesma e filmada com, provavelmente, a melhor equipe técnica que se pode ter ao lado para dar alguma pompa classuda para um projeto de temática emocionalmente carregada, mas na própria visão de seus autores sobre como tais narrativas precisam ser formadas afim de gerar um engajamento com o público para além do choque inicial: Enquanto Bebê Rena fragmentava sua linearidade para refletir a confusão interna de Richard Gadd sobre suas experiências (lembrem que ela é autobiográfica), Adolescência constrói recortes de um momento trágico em uma pequena cidade, explorando diferentes perspectivas sobre a suspeita de assassinato cometida por um garoto de 13 anos. E claro, os dois projetos chegaram de sorrateiro no catálogo do streaming para explodir na audiência e até mesmo em teorias do público em seguida.
Ao menos no caso de Bebê Rena, porque com Adolescência, não há teorias que se sustentem. E se existe alguma, desvendá-las ou chegar num denominador comum passa bem longe do que os showrunners Stephen Graham (que interpreta o pai do garoto suspeito do crime) e Jack Thorne (que já trabalhou com Graham em diversas ocasiões) desejam para os 4 episódios da produção, cada um com 1h de duração e elaborados como gigantescos plano-sequências que nos jogam em tempo real na investigação do que aconteceu, como aconteceu e por que aconteceu.
Prometo abandonar quaisquer comparações com Bebê Rena após a próxima colocação, mas, diferente da condescendência do projeto de Gadd, que apesar de tentar, jamais se justifica como um narrador tão confiável quanto a narrativa acredita que ele seja, Adolescência nasce das leituras de Graham sobre casos verídicos e recorrentes sobre jovens garotos assassinando jovens garotas, aparentemente sem um motivo que “justifique” tais atos hediondos sendo cometidos por crianças. É importante para Adolescência nascer com esse distanciamento de quem não viveu a tragédia, mas é empático o suficiente para se questionar de onde vem e tudo isso e como falar sobre.

Pois claro, Adolescência é o tipo de projeto facilmente escorregadio na direção do sensacionalismo. E confesso, pessoalmente estava até desconfiado que a proposta de 4 episódios inteiros em plano-sequência levasse a produção para esse lugar de espetacularização da dor. Mas é nessa distância que lhe permite olhar os casos de fora que os showrunners triunfam, inicialmente, no roteiro dos episódios: como pessoas de fora, não há respostas para tudo, mesmo que teimemos em procurá-las.
E se não há para eles, tampouco há para nós, espectadores. E menos ainda para a família dos envolvidos. Adolescência é um projeto de apontamentos, mas quase livre de julgamentos internos ou externos por parte de seus realizadores. É uma minissérie que tenta identificar alguma pequena raiz de onde nasce o problema, mas jamais com a pretensão de encontrar respostas claras ou satisfatórias sobre tudo. É sobre botar o dedo na ferida e permitir que a dor nos acorde para as urgências.
A temática e sua “mensagem”, é claro, são fortes. Mas os realizadores entendem que um projeto audiovisual jamais sobreviveria somente pela provocação de sua temática, e é na engenhosidade formal que a minissérie encontra um trunfo à altura de seu tema para dar força às suas provocações.
O plano-sequência em tempo real, sem nenhuma transição em cada hora de duração, intensifica a imersão na montanha de dúvidas e incertezas pelas quais todos os personagens passam. Aliás, é impressionante que, em somente quatro episódios, absolutamente todos os envolvidos que estejam ligados de alguma forma ao caso sejam trabalhados com um quê de complexidade em seus backgrounds que igualmente não oferece finais felizes ou resoluções satisfatórias, mas deixam claro o porquê daquele assassinato mexer tanto em seus íntimos.

No primeiro episódio, que acompanha a prisão de Jamie (Owen Cooper, das revelações mirins mais assombrosas que vejo em anos) e sua família tentando entender o que aconteceu enquanto participa dos procedimentos na delegacia como tutores do garoto. O ritmo não chega a ser dos mais orgânicos, já que há processos demais para caberem num único episódio e a narrativa visivelmente se acelera em algum momento, mas é notável o cuidado do diretor Philip Barantini (que comanda todos os episódios) em não somente transmitir o pânico do garoto e sua família, mas também os processos legais e exaustivos dentro da própria polícia até chegarmos num primeiro interrogatório, de fato.
E não há tempo para respirar: o desfecho tira essa primeira hora do lugar de whodunit para, em seguida, ir em busca do “por quê” no segundo episódio.
Quando corajosamente abandona a configuração familiar e a câmera se concentra em acompanhar os dois policiais que cuidam do caso numa visita à escola onde Jamie estudava, o escopo temático da minissérie ganha proporções poderosas quando começa a desvendar o que há por detrás das motivações: bullying, masculinidade tóxica, o lugar da subcultura incel na atual geração e como o acesso cada vez mais livre à internet influencia novos comportamentos nocivos, e também a dificuldade do mundo adulto em enxergar o que existe para além do que seus olhos podem ver sobre a realidade de uma geração que se sente incompreendida e, portanto, se debruça sob uma linguagem e códigos próprios para se isolar numa dinâmica de isolamento.
Os retratos estão ali, e mesmo que o roteiro (novamente, 1h de episódio ainda é pouco para tanto) não se aprofunde em nenhum deles, as situações construídas dentro do cenário escolar são suficientes para deixar claro o peso de como aquela geração lida com todas estas questões a seu modo, em especial no belo diálogo entre o policial Luke Bascombe (Ashley Walters) e seu filho.

No recorte que o terceiro episódio oferece para o caso, o jovem Jamie se encontra na última sessão psicológica com Briony (Emily Doherty), que está escrevendo um perfil psicológico sobre o garoto. Em sua hora, este episódio talvez seja o mais perturbador em suas nuances, não somente por passear com extremo detalhismo pelas atitudes manipuladoras de Jamie, que vão da inocência e confusão à misoginia em questão de segundos, mas também pela naturalidade com que o jovem ator transita entre tantas camadas e reações, sem deixar a dever para uma atriz como Doherty, que possui The Crown no currículo, só para citar um exemplo.
O embate de igual para igual entre dois atores de gerações completamente diferentes é impressionante de ver, principalmente por como ambos entendem o papel de seus personagens naquele confronto onde máscaras vão caindo e a sociopatia inevitável de Jamie se revela. O longo tempo de respiro que a terapeuta dá ao final do episódio é o do próprio espectador.
No episódio que “finda” essa narrativa de horrores, e entre aspas mesmo, pois esse é o tipo de horror que jamais irá abandonar o restante da vida daqueles indivíduos, acompanhamos a família de Jamie meses após tudo, prestes a acontecer o julgamento de Jamie e tentando recuperar alguma normalidade em suas vidas, apesar de tudo.
Este finale, em especial através dos pais do garoto, evidencia que definitivamente não há respostas prontas para tudo que aconteceu, e o que resta é tentar absorver a culpa, a raiva e o ressentimento por algo que nunca será compreendido em sua totalidade, condenando aquelas pessoas a um martírio sem fim. E, novamente, a distância com que Graham e Thorne enxergam essa história permite que ela fuja das armadilhas do sentimentalismo oportunista e desenvolva um olhar empático sobre a condenação daquelas pessoas através de uma tragédia nunca prevista ou imaginada. A cena que fecha a narrativa com o pai é de deixar o coração em pedaços.

E na sua abordagem fílmica, sobre como a câmera pode olhar e analisar todas as camadas e nuances do caso, o diretor Philip Barantini se alinha com muito êxito às próprias ideias do texto de Graham e Thorne, abrindo todos os espaços possíveis para que o elenco também dê vida a todos os sentimentos complexos e confusos pelos quais todas aquelas figuras, ligadas direta ou indiretamente ao caso, irão passar. Nesta ideia ousada de tornar cada capítulo um recorte único, Adolescência justifica muitíssimo bem as atenções que tem ganhado até o momento.
Nota: 8/10
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