Crítica | Mickey 17 – Um pesadelo futurista assustadoramente familiar

Não tem um dia que Bong Joon-ho sai de casa sem agregar ao cinema. Há quem diga que o cineasta sul-coreano, ganhador do Oscar histórico por Parasita, vive preso dentro de um único tema social já datado, mas também é inegável que a mente insana que começou com filmes singulares, como O Hospedeiro, tenha sido tão frutífera a ponto de nos entregar blockbusters reflexivos como poucos fazem hoje em dia. Uma dose alta de entretenimento sem deixar de fora o raciocínio.

Claro que o peso do Oscar nas costas gera uma enorme cobrança e seu filme após esse feito, o novo Mickey 17, certamente não supera as expectativas e o teor político impactante do antecessor, mas essa comédia de ficção científica niilista com Robert Pattinson em dose dupla, se aproxima mais do cinema que Joon-ho fazia antes de ser aclamado, especialmente Expresso do Amanhã e Okja. E isso é absolutamente sensacional. 

Os acertos e erros de Mickey 17

Apesar de ter poucos filmes no currículo, cada obra de Bong Joon-ho é meticulosamente pensada para impactar em diferentes camadas — do sensorial ao psicológico. O cineasta faz parte de uma geração destemida e criativa, capaz de traduzir suas vivências para a tela, mesmo em narrativas surreais carregadas de metáforas sobre ética, consciência de classe e os desafios da classe trabalhadora.

E Mickey 17, baseado no livro homônimo de Edward Ashton, é uma experiência singular e sombria, que nos faz rir de nervoso ao evidenciar que, por mais absurdo que pareça, seu universo não está tão distante da nossa realidade. Joon-ho satiriza Trump, expondo sua insanidade e manipulação, e mostra como ideias bizarras, quando levadas a sério, podem resultar em consequências irreparáveis para a humanidade.

Mais do que uma comédia ácida sobre ética no trabalho e capitalismo—com ecos de RupturaMickey 17 é um retrato inquietante de como um homem insignificante e minúsculo pode, paradoxalmente, causar estragos imensuráveis. E o diretor sabe muito bem como fazer um filme em lingua-inglesa sobre o invertido “sonho americano”.

A trama acompanha um homem bastante pessimista e contido interpretado por Robert Pattinson, que entrega mais uma performance de tirar o fôlego, reafirmando seu lugar entre os grandes atores de sua geração. Ele se voluntaria para ser um “Descartável”, um trabalhador designado a morrer repetidamente enquanto a humanidade expande sua presença pelo universo. A cada morte, ele é “impresso” novamente em uma bioimpressora, renascendo com todas as memórias de suas versões anteriores.

No entanto, a dor se intensifica a cada recomeço, até que Mickey, agora na sua 17ª versão, começa a questionar se sua existência deve se resumir a esse ciclo interminável. Embora repleta de aventura, a narrativa se destaca pelo humor ácido e pela comédia satírica, ambientada em um planeta gelado, cheio de criaturas-vermes extraterrestres, onde uma parcela da humanidade—acompanhada de um político grotesco supremacista, com sua heterossexualidade patriarcal compulsória (vivido por um Mark Ruffalo canastrão), e sua esposa-troféu obcecada com molhos (Toni Collette)—busca construir uma sociedade supostamente “superior” e “pura”.

Com um roteiro repleto de reflexões filosóficas e simbolismos, Bong Joon-ho mais uma vez expõe a classe trabalhadora como um mero instrumento nas mãos dos poderosos. No entanto, Mickey 17 se afasta do tom dramático de Parasita e se aproxima do humor sombrio presente em seus trabalhos anteriores. Há uma forte mensagem sobre colonização, mas, diferentemente de suas obras passadas, este filme parece mais polido e acessível, com menos espaço para interpretações abertas.

O humor funciona bem, mas a intensidade exagerada de alguns personagens pode torná-los menos convincentes. A trama não se preocupa tanto em desenvolver histórias de fundo, preferindo um tom mais direto, onde a comédia permeia até os momentos dramáticos—o que acaba diluindo parte da carga emocional. O grande destaque fica para a relação entre Mickey 17 e Mickey 18, que é mais violento e caótico. Apesar de serem, essencialmente, a mesma pessoa, suas identidades contrastantes criam uma dinâmica hilária, que se torna um dos pontos mais marcantes do filme.

Os vilões aqui combinam burrice e maldade destrutiva em doses iguais, tornando a história ainda mais assustadora por sua proximidade com a realidade. As referências ao governo Trump são evidentes—incluindo um atentado a tiros que, por coincidência bizarra, ecoa eventos do mundo real. Essa busca insana por um “novo mundo” culmina em um clímax caótico, mas irresistivelmente divertido, com habitantes nativos inteligentes ameaçando pôr fim à raça humana.

A sequência de ação que encerra a trama é visualmente impactante e bem dirigida. Tecnicamente, o filme é impecável, com uma fotografia fria e enquadramentos criativos que elevam sua estética a um nível quase surreal. No entanto, o ritmo oscila, e alguns diálogos prolongados acabam quebrando a fluidez da narrativa.

Veredito

O novo épico de ficção científica de Bong Joon-ho não busca replicar a carga dramática de Parasita, mas se aprofunda em um pesadelo distópico repleto de comédia ácida, simbolismos e reflexões sobre uma realidade absurda—e assustadoramente próxima da nossa. Mickey 17 é uma aventura niilista, divertida e insana, que entrega puro entretenimento sem abrir mão da inteligência, da emoção e da criatividade que marcam a mente de um dos cineastas mais importantes da atualidade.

Mesmo explorando um terreno familiar e tematicamente alinhado a seus trabalhos anteriores, Joon-ho permanece fiel às suas origens, às suas vivências e à mensagem poderosa que deseja transmitir através do cinema. E ainda que o drama nem sempre acompanhe a ambição da premissa, é impossível desviar os olhos de Robert Pattinson.

NOTA: 8/10

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