Crítica | O Quarto Ao Lado – Que Almodóvar nunca feche sua porta de sensibilidade

É difícil não se envolver emocionalmente com um filme de Pedro Almodóvar. Seu cinema nunca foi sobre grandes causas ou efeitos colaterais. Não é o blockbuster do verão, nem o candidato óbvio ao Oscar, mas há algo profundamente humano, natural e envolvente em sua visão de mundo. O cineasta espanhol tem um olhar único para o feminino que o cerca, o que transforma suas tramas, muitas vezes novelescas, em verdadeiros banquetes de entretenimento, feitos para aquecer o coração como só ele sabe fazer.

E é surpreendente pensar que, mesmo após mais de 40 anos de carreira, Almodóvar, um ícone do cinema tradicional, só recentemente cedeu às rédeas de Hollywood com seu primeiro longa-metragem em inglês. Essa escolha parece ter um propósito – seja para se reinventar ou para se despedir. Quando Almodóvar tem algo a dizer, é sempre um prazer parar para escutar. O Quarto ao Lado (The Room Next Door), sua nova dramédia que fez estreia no Brasil no Festival do Rio, pode ser sim o crepúsculo de sua trajetória como cineasta ou o alvorecer de uma nova fase. De uma coisa não há dúvidas: continua dolorosamente belo, como tudo que ele cria, não importa o idioma.

Os acertos e erros de O Quarto ao Lado

O grande trunfo de O Quarto Ao Lado – baseado no livro O Que Você Está Enfrentando, de Sigrid Nunez – são, sem dúvida, suas duas protagonistas. Julianne Moore e Tilda Swinton são estrelas que, por si só, iluminam qualquer roteiro simples, trazendo um brilho único para cada bendita cena. É difícil errar com essas duas no paLco; a naturalidade com que elas atuam torna tudo incrivelmente belo e melodramático.

E Almodóvar, já conhecido por sua habilidade em dirigir mulheres, aproveita cada mínimo detalhe das performances de Moore e Swinton para elevar ainda mais a acidez, o humor e a doçura do filme. A química entre elas é tão evidente e fluida que seria possível assistir a três temporadas de uma série com as duas discutindo, de maneira descontraída, sobre a vida e a morte. E, falando em morte, ela é o vilão invisível dessa narrativa.

Depois de anos afastadas pelas adversidades da vida, as amigas se reencontram em uma situação inesperada e complexa. Swinton interpreta uma jornalista de guerra que, ao descobrir um câncer terminal, decide que quer partir desta vida por escolha própria, enquanto ainda está no auge, antes que a doença a consuma. Para isso, ela pede que sua amiga de longa data, vivida por Moore, a acompanhe em seus últimos dias e testemunhe sua morte.

Esse reencontro, claro, reacende a amizade entre elas, enquanto Almodóvar aborda, de maneira sensível, o tema da eutanásia – um debate delicado que lembra o filme Mar Adentro, de Alejandro Amenábar, lançado em 2004. Embora seja um assunto complexo para uma obra cômica e que gera opiniões diversas, serve como pano de fundo para momentos belamente orquestrados, pensados para provocar reflexão e emoção, como ambos os cineastas sabem fazer tão bem.

O humor presente no roteiro impede que o tema seja tratado de forma piegas, cafona ou excessivamente triste. Pelo contrário, o foco está na amizade reconstruída entre as duas protagonistas e como essa cumplicidade permite que uma delas tenha o fim desejado, sem sofrimento ou dor além do necessário. Um privilégio para poucos.

A casa de campo que elas alugam no interior se transforma em um verdadeiro templo de perdão, onde, entre filmes clássicos e vinhos caros, as amigas refletem sobre suas vidas, amores e angústias. Parece que Almodóvar, por sua vez, também está em um processo de auto-reflexão. E se engana quem acha que o senhor já está cansado. O filme traz um olhar atento às questões sociais e ambientais, como uma sutil crítica do cineasta espanhol aos Estados Unidos. Isso demonstra sua total lucidez sobre o mundo ao seu redor, mesmo aos 75 anos.

O texto, ao mesmo tempo voraz e despretensiosamente simples, carrega influências de Ingmar Bergman, Richard Linklater e toques sutis de Woody Allen. Ainda assim, O Quarto ao Lado é inconfundivelmente um filme de Almodóvar. Isso se reflete tanto em suas cores vibrantes e características, quanto na maneira com que explora personagens profundamente complexas e suas relações singulares com o mundo ao redor. É tanta beleza visual e estética que parece um quadro vivo, mas em uma escala muito menor e mais “natural” que em seus filmes anteriores.

Veredito

Com uma lucidez admirável sobre o mundo ao seu redor e um profundo apreço pelo cinema artesanal, Pedro Almodóvar faz uma estreia brilhante em língua inglesa com O Quarto ao Lado, um filme doce, honesto e ácido sobre a transição da vida para o que vem depois. Embora tenha uma escala cinematográfica mais ampla, o filme mantém o familiar e envolvente melodrama de suas dramédias anteriores.

Moore e Swinton estão soberanas e incrivelmente críveis, enquanto a trilha sonora, a fotografia impecável e o elenco completo funcionam como um banquete para os olhos e o coração, com cada linha de diálogo cuidadosamente pensada para nos tocar. É uma obra admirável tanto em termos de adaptação – seja ao idioma inglês ou à dinâmica de Hollywood – quanto como um tributo à tradição do cinema, mostrando o toque moderno e divertido de Almodóvar.

O filme reflete seu afeto pelas personagens femininas complexas e o universo que ele sempre criou, cheio de cor, estética e beleza meticulosa. Além de visualmente deslumbrante, este é um filme profundamente comovente, que celebra o valor das verdadeiras amizades e a importância de dignidade e respeito, mesmo diante da morte. Ele mistura o bege sóbrio do cinema norte-americano com as cores vibrantes e calorosas que definem o cinema espanhol. Lindo.

NOTA: 9

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