Uma vez ou outra, o cinema brasileiro nos presenteia com um filme tão carregado de camadas, de dor e de simbolismos, que parece que nos destrói por completo para depois reconstruir o que sobrou de nós. E Pedágio, o novo drama da diretora Carolina Markowicz (Carvão), é um exemplo primoroso desse poder cinematográfico.
Em uma trama repleta de angústias e embate familiar, seja de um filho que apenas deseja ser ele mesmo ou de uma mãe em sofrimento em busca de respostas não ensinadas, o longa é uma obra-prima que se destaca como um dos melhores filmes deste ano, deixando-nos com uma mensagem persistente sobre a dor por trás da desinformação.
A trama e o elenco de Pedágio
Talvez Pedágio seja mais do que apenas um filme sobre relações; é uma jornada de autodescoberta e confronto com a realidade não dita. A trama, habilmente tecida por um roteiro ácido e afiado como navalha, nos leva por um labirinto de emoções e dilemas sociais. Suellen, interpretada de maneira visceral por Maeve Jinkings (Os Outros), é uma cobradora de pedágio que se vê diante de uma escolha complexa: usar seu trabalho para financiar ilegalmente a participação do seu único filho, Tiquinho (Kauan Alvarenga), em uma controversa “cura gay”. A história se desenrola entre diálogos doloridos e momentos absurdos, tudo isso enquanto mantém uma consciência aguçada do impacto de suas palavras no espectador.
O elenco, indiscutivelmente, é o coração pulsante desta obra. Maeve Jinkings, conhecida por sua versatilidade, entrega uma atuação magnífica, revelando novas dimensões de onde é capaz de chegar. Suellen está em constante sofrimento, assim como seu filho, pois nunca foi ensinada da diversidade do mundo.
Kauan Alvarenga (O Órfão), por sua vez, é um encanto magnético, capturando a essência de Tiquinho com uma mistura de vulnerabilidade, coragem e amor reprimido em cada olhar. Apesar da tempestade constante, existe amor e a química entre os dois é palpável, que enriquece cada cena com uma autenticidade fantástica, especialmente se você possui alguma vivência LGBTQIAP+.
A direção de Carolina Markowicz merece elogios pela sensibilidade com que aborda temas tão delicados e pouco mencionados com essa magnitude nas telas do cinema brasileiro. Ao guiar os atores em meio a uma trama tão intensa, permite que a narrativa respire, sem perder o impacto emocional. Markowicz mergulha nas complexidades da relação mãe-filho e captura nuances de repressão, desejo de liberdade e a trágica busca por aceitação em uma sociedade dominada por dogmas religiosos.
Em termos técnicos, Pedágio também ressoa com uma simplicidade impressionante. Os cenários portuários entre Rio e São Paulo não são apenas pano de fundo; são metáforas visuais da solidão dos personagens. A trilha sonora, magistralmente escolhida, e a cinematografia, com suas cores frias e composição cuidadosa, aprimoram a experiência, criando um ambiente que completa a montanha-russa de emoções que vemos na tela.
Ao revelar as camadas da trama, o enredo se destaca como uma obra rica em detalhes desconfortáveis e mundanos. Cada alfinetada na história ecoa como um grito de socorro em um país onde doutrinas religiosas muitas vezes eclipsam a verdade.
Veredito
Pedágio é daqueles filmes que atravessam a nossa vida, nos colocam no chão de tanta dor e depois estendem uma mão para que nos levantemos mais fortes. A narrativa, cirúrgica em sua precisão, mergulha corajosamente nas complexidades da opressão enfrentada pela comunidade LGBTQIAP+ em seus próprios lares.
Fazendo uso de um humor afiado e de performances impactantes do elenco, o filme mostra como o cinema brasileiro tem uma atração natural por retratar a verdade nua e crua como ela é. No fim, a verdade que permanece é de que o amor, mesmo cercado de espinhos, se liberta cedo ou tarde. Mas Pedágio não é sobre amor em si. O filme é, acima de tudo, sobre se libertar de tudo que nos faz ser a versão mínima do que somos de verdade. É a taxa que pagamos para nos confrontarmos, evoluirmos e, finalmente, sermos livres.
NOTA: 9/10
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