Desde sua primeira e irregular temporada, Sweet Tooth, da Netflix em parceria com a Warner Bros., é um caso elementar de adaptação que não decola nunca. Superficialmente, nenhuma de suas alterações nos quadrinhos de Jeff Lemire são necessariamente problemas; afinal, mudar os elementos da trama para um novo contexto pode ser divertido e até dar mais sentido à obra original. No entanto, a decisão de transformar uma parábola sombria e pós-apocalíptica em uma aventura infantil no estilo Steven Spielberg vem com uma série de efeitos colaterais narrativos que a série parece não conseguir superar em seu segundo ano.
Se o começo da história dialogava de forma autoconsciente com a pandemia de Covid-19 – e foi muito por conta disso o motivo de seu sucesso entre o público no streaming – a segunda temporada chega com altas expectativas de para onde essa trama mirabolante vai nos levar depois de um gancho interessante no desfecho da anterior, mas, infelizmente, parece ter perdido a graça e o ânimo que a tornaram tão popular, entregando uma trama mediana, sem amadurecimento algum, que não consegue manter o ritmo e, por vezes, ainda é mais apática que a antecedente.
A trama e o elenco
Novamente com produção do astro Robert Downey Jr., grande parte dos problemas centrais da série em relação ao seu icônico material de base está em como essa versão colorida e fofinha da Netflix sacrifica as rigorosas jornadas emocionais dos personagens e as decisões de mudança de vida que são forçados a tomar diante de circunstâncias difíceis por conta de uma pandemia terrivelmente cruel.
Ao tornar essas escolhas fáceis demais, ao oferecer soluções simples em vez de novos obstáculos e ao tratar a esperança como uma configuração padrão inabalável em vez de uma mercadoria preciosa neste fim do mundo em caos, a série se torna apenas uma aventura bobinha e sem espinhos, enriquecida por afetos pessoais, mas medrosa em sair da zona de conforto e ser brutal quando necessária, como vemos em adaptações como The Last Of Us, por exemplo.
A premissa do programa, como a dos quadrinhos da Vertigo, sempre foi divertidamente intrigante. No Ano 1 descobrimos que cerca de uma década atrás o mortal vírus H5G9 começou a abater a população humana, e todas as crianças nascidas depois disso eram um híbrido animal-humano, embora ninguém pareça saber o que veio primeiro. Uma dessas crianças híbridas, um menino cervo de dez anos chamado Gus (e/ou Bico Doce no Brasil), vive no meio da floresta com seu pai Richard (Will Forte), a quem ele chama carinhosamente de “Paba”. O sujeito tem regras para manter Gus seguro e fora de vista, já que os seres humanos tendem a caçar crianças híbridas. Através desse chamado para a aventura, o menino precisar lidar e se aventurar nesse mundo real que é tudo menos lúdico.
O ponto forte da 2ª temporada é a evidente evolução dos personagens, especialmente Gus (Christian Convery segue ainda melhor depois de O Urso do Pó Branco), que se torna cada vez mais independente e determinado em sua jornada, mas ainda com olhar doce e gentil. Além disso, o elenco continua entregando atuações sólidas, destacando-se a química entre Gus e seu parceiro de jornada Grandão (Nonso Anozie), assim como a relação de companheirismo e confiança do protagonista com a híbrida Rabicó (Naledi Murray), que é colocada em prática o tempo todo durante a maior parte dos novos capítulos.
Porém, a trama – que começa praticamente de onde a temporada anterior parou, com Birdie (Amy Seimetz) viva e em sua missão em uma área ártica – parece ter perdido a profundidade e o brilho que tornaram a primeira temporada tão envolvente por ter sido novidade. Os novos personagens introduzidos não são tão interessantes quanto os anteriores, e a narrativa parece estar mais preocupada em seguir os clichês do gênero do que em inovar ou mesmo direcionar a série para um caminho menos obvio.
Sweet Tooth quer ser uma trama apocalíptica genuína, mas se recusa a abraçar a violência do contexto, reduzindo quase todas as arestas possíveis, muitas vezes em detrimento da narrativa. São 8 capítulos estáticos, sem grandes obstáculos e com um lento e cansativo progresso, sendo que praticamente cinco deles as crianças estão presas e pouco agregam à história como um todo.
Além disso, a segunda temporada sofre com problemas terríveis de ritmo e de construção de suspense. A trama parece se arrastar em alguns momentos, enquanto em outros parece correr apressadamente para entregar resoluções rápidas demais. Isso faz com que a série perca a tensão, a sensação de perigo crescente e até mesmo influência em algumas sequências de ação. Dessa vez Gus divide tela com tanta gente desinteressante que dá até vontade pular algumas partes dos longuíssimos episódios de 1 hora de duração.
Outro ponto fraco é a falta de aprofundamento na mitologia da história. Se você espera por respostas claras, vai esperar sentado. A série parece estar mais preocupada em entregar cenas de ação feitas de qualquer jeito do que em elucidar as origens dos híbridos e do vírus que os afetou. As explicações até chegam devagar, mas demora tempo demais para vir e se perdem em meio a tanta falação desnecessária e encheção de linguiça.
Outra questão que prejudica a temporada é a falta de um vilão marcante. Um amedrontamento novo e coerente. O primeiro ano introduziu um antagonista até bem construído no General Abbot (Neil Sandilands), mas o roteiro pouco inventivo decidiu reaproveitar a mesmíssima ideia e apenas acrescentar algumas poucas novas camadas. Se antes era uma ameaça em potencial, que dificultava a jornada do Gus, agora soa quase como um Robotnik cômico que nunca consegue colocar as garras no Sonic. Porém, há um momento de confronto final dele com o Grandão que quase convence de que seu retorno foi justificável, ainda que com uma despedida tosca.
A paleta de cores, por sua vez, é bastante monótona e seus ambientes raramente parecem tão desconcertantes quanto os personagens afirmam ser. As cenas externas diurnas – que existem em abundância – sofrem com o tempo de cor sem saturação usual das produções da Netflix. É leve o suficiente para ser inofensivo, mas não aberto o suficiente para parecer uma decisão estética real que ajuda a contar a história, o que acaba tornando toda a conquista um feito genérico.
A identidade visual utiliza a típica estética Nature Taking Over para enfeitar essa mistura de humanos e animais e até brilha com pouco CGI e maior uso de efeitos práticos – talvez ainda mais agora – mas ainda não atinge o ponto ideal. Por fim, através de um desfecho emocional que realmente funciona, marcado por despedidas e reencontros, e que abraça a esquesitice fofa convencional, Gus passa por sua provação final, assume mais maturidade e decide ir em rumo a uma nova missão. Mas será mesmo que essa trama rala sustenta mais uma aventura prolongada? Se depender do gancho da nova ameaça no final, tudo indica que a Netflix vai tentar.
Veredito
Em resumo, mesmo abraçando ainda mais a esquesitice habitual que fez a série ser divertida, a 2ª temporada de Sweet Tooth até se esforça, mas não consegue manter o mesmo nível de qualidade e originalidade que a tornaram um sucesso na primeira temporada. Apesar de contar com personagens interessantes e atuações sólidas, a trama perde em profundidade, ritmo, construção de suspense e desenvolvimento da mitologia da história.
O banho adocicado da aventura infantil que a Netflix dá nessa adaptação sombria e peculiar da Vertigo é cabível e até entretém, mas para se criar uma história pós-apocalíptica de qualidade, é essencial acrescentar um pouco mais de acidez na fórmula. O segundo ano não é terrível, repete as boas ideias e a fofura inicial, mas não avança, não desperta o interesse e parece cada vez mais fruto do poptimismo vazio diante de tristezas e tragédias mal definidas, despertadas durante o período da pandemia de Covid-19. Se funcionou anteriormente devido às emoções do momento, hoje parece uma série dissolvida pela falta de engenhosidade.
Nota: 6/10
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