Crítica | Beau Tem Medo – Uma sessão de terapia em dramédia paranoica

Se a distorcida e caótica mente visionária de Ari Aster pudesse se materializar em uma obra cinematográfica, sem dúvida seria através da odisseia Beau Tem Medo, o terceiro filme de seu currículo consagrado depois dos icônicos Hereditário e Midsommar. Um filme peculiar, surrealista e que definitivamente deve se tornar um divisor de águas em sua carreira. Impregnado de dor e culpa, o projeto da A24 – que chega ao Brasil pela Diamond Films – assume um viés de épico pela grandiosidade do drama e por proporcionar três horas de terapia intensiva impossível de ser esquecida.

São tantos temas densos e reflexivos ao mesmo tempo, que se torna quase impossível de descrever a experiência maluca de mergulhar nessa história absurda, carregada de medos familiares e reflexões psicossexuais, mas que escolhe – para a surpresa de todos – o riso constrangedor ao invés de horror tradicional dos filmes de Aster. É o tipo de trabalho que leva muito tempo para digerir e deve fisgar especialmente os fissurados pelo cinema interpretativo e terapêutico, mas, por consequência, talvez também seja a obra menos comercial do diretor. Beau Tem Medo explora todas as esquesitices do cineasta, mas não carrega o impacto visceral dos trabalhos anteriores.

A trama e o elenco

Nesse universo imaginativo e surrealista, Joaquin Phoenix (Coringa) interpreta Beau, um homem solitário de 50 e poucos anos que vive em um apartamento em ruínas no que parece ser uma cidade americana moderna nascida satiricamente da propaganda conservadora. O crime e a instabilidade mental correm desenfreados nesta concepção absurda da vida urbana, que imediatamente evoca os medos mais vívidos de Beau (uma potente mistura de hipocondria e agorafobia). Phoenix está totalmente comprometido com o papel, capturando o terror de olhos arregalados de Beau enquanto ele caminha pelas ruas cheias de geriatras violentos e nus e gângsteres fortemente tatuados.

Com bastante perspicácia do roteiro, o personagem é feito para ser invisível e hipersensível ao mundo à sua volta, misturando realidade com delírio à ponto de ser quase impossível saber qual é qual na história. Algo que também a torna, claro, confusa. É uma trama sobre medo, seja medo de viver, de envelhecer ou de lidar com a realidade da vida adulta e seus conflitos sufocantes, questões sexuais e amadurecimento. Tudo isso é apenas uma base para o enredo central – embora chamá-lo de “enredo” no sentido tradicional dificilmente pareça adequado – no qual Beau descobre a morte repentina de sua mãe solteira autoritária em circunstâncias sombriamente hilárias.

Esse acontecimento esmagador na vida do paranoico protagonista dá início a uma verdadeira jornada sinuosa, contada em uma espécie de quatro capítulos distintos, enquanto ele faz a longa aventura de volta para casa. Onde o primeiro capítulo estabelece sua situação de vida, o segundo o vê praticamente adotado por um gentil e rico casal suburbano, Grace (Amy Ryan) e Roger (Nathan Lane), cuja maneira beira o assustadoramente otimista graças a um par de performances bem equilibradas.

Isso abre a porta para o absurdo cômico repleto de delírio, uma mistura potente que se mostra incrivelmente divertida graças à ingenuidade de Phoenix perante aos inúmeros perrengues que passa enquanto busca descobrir mais sobre seu passado e separar o que foi memória vivida do que foi sonho durante sua infância complicada. O terceiro capítulo mostra Beau sendo levado por uma trupe de teatro que vive na floresta, cujo trabalho esotérico no palco não apenas instila nele possibilidades oníricas para um futuro esperançoso, mas também desperta as reflexões religiosas do filme. Consciência e realidade se combinam para criar a ambientação imaginativa e de devaneio do filme.

Já o quarto e último segmento, cujos detalhes são deixados completamente intocados, é um confronto muito mais direto dos temas que Aster constrói lentamente nos três primeiros capítulos, usando sonhos dispersos e flashbacks da infância de Beau para avaliar seus sentimentos complicados após a suposta morte de sua mãe. A obra é tanto sobre a perda de um dos pais quanto sobre a culpa que pode acompanhar uma experiência tão tumultuada, nascida das formas complexas e até paradoxais que o passado pode se manifestar no presente. A vida adulta em desespero de Beau é reflexo de sua infância tóxica. Muito do filme é exatamente sobre saúde mental em crise e esse ciclo tenso de abusos familiares.

A direção

Como uma boa obra complexa de Ari Aster – sem dúvida a mais elaborada até agora – trata-se de um filme cuja linha do tempo exata não está clara, graças a detalhes específicos da época que parecem deslocados e nunca combinam totalmente com os designs de figurino e maquiagem dos personagens. A trama parece pular para frente e para trás entre eventos e memórias por puro capricho, com flashbacks motivados menos pela função de contar histórias e mais pela sensação prazerosa que o diretor sente em dar um nó na cabeça do espectador. Incorpora uma consciência fragmentada que por vezes soa inteligente em seu formato, por outras, totalmente arrogante em não se explicar.

Essa eloquência temporal que Aster cria para narrar seu drama também é auxiliada pelo fato de que Beau é geralmente retratado como careca, grisalho e desalinhado (exceto em flashbacks da infância, onde é interpretado pelo jovem Armen Nahapetian, que se encaixa tão estranhamente no papel que mais parece uma inteligência artificial). A parte técnica, por sua vez, é estelar em todos os aspectos. O uso do som não é apenas particularmente bizarro – a maneira engenhosa como Aster mistura vozes humanas para aumentar a paranoia de Beau – mas o enquadramento visual supera tudo que ele já realizou até então.

Cada plano é feito com tamanha genialidade e maestria de alguém que sabe o efeito que cada mínima escolha desperta no público. Mesmo com o senso de humor irônico aguçado, ainda sobra espaço para sequências estranhíssimas de horror, que resgatam a energia fúnebre de Hereditário. A atuação magnífica de Phoenix é a chave para o tom absurdo. As gigantescas três horas de duração são praticamente justificadas apenas por suas tomadas de reação, nas quais a perspectiva perdura por longos períodos sem cortar. 

Veredito

Arte com A maiúsculo, que penetra os confins da mente e faz um estudo sinistro da psique humana em sua mais profunda eloquência. Beau Tem Medo é fascinante por ser engraçado e aterrador em igual media, muitas vezes nos mesmos momentos. Um feito e tanto para o currículo impressionante de Ari Aster, que foi do fúnebre ao alucinógeno e agora explora seu lado surrealista.

Mesmo com suas longuíssimas três horas de duração – quase uma minissérie sobre os mommy issues de Aster – a dramédia nunca desvia nossa atenção, mas se embola no ritmo lento e deve afastar até mesmo os mais apaixonados pelo cinema peculiar do diretor. Ancorado pela atuação absurda de Joaquin Phoenix como um homem paranoico e irritantemente ingênuo, o roteiro audacioso por vezes se perde em sua própria ambição de desconstruir maliciosamente sua própria linguagem narrativa. Ainda assim, é uma façanha espetacular, perdurável e catártica de cinema.

NOTA: 8/10

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