Situado na Irlanda em 1862, ‘O Milagre‘ é um drama de época que revela suas muitas camadas ao longo da história. Tudo começa com uma simples investigação de uma enfermeira, que deve descobrir se a menina colocada sob sua guarda é um verdadeiro milagre ou apenas mais uma farsa. Logo, porém, diversos fatores da vida da menina são trazidos à tona e descobrimos que há muito mais nela do que inicialmente aparenta. O filme faz um argumento convincente para si mesmo à medida que temas mais profundos entram em jogo. O que aumenta essa intriga é a presença de uma narradora, que aparece no final como uma mulher vestida de preto. Quem é ela e o que sua presença significa para ‘O Milagre’? Vamos descobrir.
ALERTA DE SPOILERS!
Quem é a Mulher de Preto? Ela é a Narradora?
Antes de nos apresentar a Lib Wright e à pessoa que ela vai observar nas próximas quinzenas, ‘O Milagre’ dá as boas-vindas ao público de uma maneira não convencional. Somos levados pelos cenários elaborados que foram usados para filmar a história, e uma voz nos dá uma ideia do que esperar. Diz “não somos nada sem histórias” e convida-nos a “acreditar” naquela que vai contar, tal como as personagens (não os atores) acreditam nas suas histórias com “completa devoção”.
Esta introdução dá o tom do filme, levando o público ao poder das histórias que contamos a nós mesmos. Para os personagens de ‘O Milagre’, é a história que eles escolhem acreditar que decide seu destino. Anna acredita que, ao passar fome, ela libertará seu irmão do Inferno. Sua família e as pessoas da comunidade alimentam sua narrativa e a coisa toda se agrava até o ponto em que a própria Anna se torna uma história, que cada um interpreta à sua maneira.
Através da presença do narrador, o filme também garante que o público nunca se sinta parte da história. Somos estranhos, observadores, assim como Lib, e a primeira cena e a última fazem com que nos lembremos disso. De fato, se o público ficar muito absorto no que está acontecendo com Anna e esquecer seu lugar, o narrador aparece, lembrando-nos de sua presença. É uma forma interessante de criar espaço entre a história e o público, quase como se evitasse que este último fosse consumido pelo primeiro. O que torna tudo ainda mais intrigante é usar um ator que interpreta um personagem do filme como narrador.
O diretor Sebastián Lelio explicou que essa também foi uma forma de dizer ao público que, apesar de ser um drama de época, o filme pretende refletir as coisas que assolam a contemporaneidade. “O enquadramento e o fato de começar hoje… é uma forma de dizer que isto [tipo de história] sempre aconteceu. Aconteceu na década de 1860. E continuará a acontecer, a menos que mudemos a dinâmica do poder. Então, eu estava um pouco mais interessado nisso do que em enfatizar demais a precisão histórica”, disse ele.
O filme primeiro nos apresenta a presença de um narrador por meio de sua voz. É na segunda aparição que descobrimos quem eles realmente são. É quando Kitty O’Donnell (interpretada por Niamh Algar) quebra momentaneamente a quarta parede olhando para a câmera e bem em nossos olhos que descobrimos que ela é a narradora. Sua identidade é confirmada na cena final quando Algar aparece, mas não como Kitty, todo vestido de preto, embrulhando as coisas para nós.
Escolher a atriz que interpreta Kitty como narradora é uma escolha fascinante, mas, no contexto do filme, nada surpreendente. Há uma linha clara quando se trata de pessoas que estão dentro e fora de Anna, e a maioria das pessoas está em ambos os lados. Kitty, por outro lado, caminha nessa linha precária. Seu relacionamento exato com Anna não é especificado. Ela claramente não é sua irmã, porque a foto da família O’Donnell não a apresentava. Ela deve ser sua tia ou prima. Essa natureza estendida de seu relacionamento coloca uma distância delicada entre Kitty e Anna, onde a primeira faz parte do círculo interno, mas ainda pode ser uma estranha. Ela dá uma espiada atrás da cortina, mas não se sente realmente parte dela.
As aparições de Kitty na história também parecem estratégicas em retrospectiva. Ela é a primeira O’Donnell que Lib, assim como o público, conhece. Ela também é quem conta mais histórias para Lib. Ela conta à enfermeira sobre “o corpo e o sangue de Cristo” que Anna comeu antes de começar a jejuar. É quando Lib diz a Kitty que ela “não está procurando uma história”, mas fatos. Kitty diz que os fatos de Lib são, de certa forma, a história que ela conta a si mesma. E para deixar claro, Kitty assume a identidade do narrador, apenas por alguns segundos.
Mais tarde, é Kitty quem usa a frase “o beijo de mãe é sagrado”, o que acaba levando Lib a decifrar como Anna comeu secretamente todo esse tempo. Kitty também conta a Lib a história da família de Will. Como se seu papel como contadora de histórias ainda não estivesse firmemente estabelecido, também a encontramos lendo coisas em voz alta. É apresentado sob o disfarce de Kitty aprendendo a ler. Ela lê uma passagem da Bíblia; ela lê o artigo escrito por Will Byrne; e no final, ela também lê o artigo que revela que Anna foi declarada morta pelas autoridades e nenhuma acusação foi feita contra seus pais ou o comitê autonomeado. Durante essa leitura, também é interessante notar que no momento em que a câmera sai de Kitty, ela não tropeça mais ao ler o artigo.
Quando a vemos novamente, na cena final, ela repete “dentro, fora”, a mesma coisa que Anna costumava dizer enquanto brincava com o taumatrópio que Byrne lhe deu. É quase como virar a última página do livro e depois fechá-lo pensando em sua mensagem, que neste caso é a perspectiva. Ela nos lembra que as histórias nos definem. É o que escolhemos acreditar que faz a diferença, assim como aconteceu com Anna, que acaba sendo salva pelo mesmo sistema de crenças que a levou à beira da morte. Deixando-nos com “dentro, fora”, o narrador leva o público a confrontar todas as coisas em que acredita e ver como suas próprias vidas são definidas por isso.
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