Se toda história tem dois lados, a dos Beatles tem, no mínimo, quatro. Em “The Beatles: Get Back”, nova série documental do Disney+ que chega a partir desta quinta-feira (25), Peter Jackson não poupou horas de tela para mostrar as diferentes perspectivas sobre o processo de criação do último álbum já lançado pelo grupo.
Quase como uma retratação histórica, o diretor de “O Senhor Dos Anéis” desmontou a concebida ideia de que “Let It Be” foi construído, gravado e performado durante um maremoto de desentendimentos e tensões – visão majoritariamente apresentada no documentário homônimo de Michael Lindsay-Hogg, também lançado em maio de 1970. Dessa vez, a narrativa retorna de maneira mais genuína aos vinte e dois dias de inverno britânico que conceberam o projeto. Finalmente, o público está frente a frente com John, Paul, George e Ringo de janeiro de 69, quando o projeto ainda levava o nome de “Get Back”.
Durante a cabine de imprensa em São Paulo, foi exibida uma versão compilada dos três episódios do documentário, que segue a ordem linear dos acontecimentos da época. Seria, é claro, impraticável apresentar o conteúdo completo, já que Jackson transformou – para a felicidade dos beatlemaníacos – aproximadamente 56 horas de gravações guardadas por décadas em pouco mais de 8 horas de conteúdo.
De cara, é de se impressionar o trabalho de restauração imagética e sonora feito pela equipe. A definição torna quase possível contar os poros do rosto de John Lennon em um take mais fechado. Já o áudio com maior qualidade é resultado de programas de inteligência artificial, que permitem até separar alguns sons captados de outros, como o de cada instrumento durante os ensaios. Além do primor técnico, a produção é enriquecida ao revelar os bastidores intimistas e despretensiosos do quarteto fabuloso.
Em um dos dias de produção, de dentro da sala de controle, os integrantes estão sentados lado a lado para ouvir o que acabaram de criar. Foram inúmeras tentativas feitas durante a tarde para chegar até uma gravação da faixa “Get Back” que agradasse. Ao longo das tomadas, McCartney conduz a banda, faz pequenas observações – “Um pouco mais rápido” -, e pede para que os outros foquem. Honrando suas origens britânicas, Harrison fala sobre uma pausa para o chá. Enquanto isso, Lennon oscila entre momentos de reflexão e brincadeira – “Temos que nos ouvir direito. Menos o Ringo”. Starr, por sua vez, permanece atento às deixas dos demais para dar o ritmo na bateria. É um ambiente de trabalho. Porém, ao se sentarem juntos, são os detalhes rotineiros que se destacam.
Em um take, Yoko discretamente oferece um chiclete para John, colocando-o dentro da mão do músico, que escuta atentamente uma canção. Ela, inclusive, nitidamente dá espaço para a banda, contrariando em diversas cenas a errônea ideia de que a artista teria sido o grande pontapé para o fim do grupo. Paul, por outro lado, demonstra insegurança sobre sua voz, ao afirmar que não está cantando bem. São em pequenos e únicos momentos como esses que o documentário pode até fazer esquecer de que ali estão as mentes criativas de um catálogo recheado de composições inesquecíveis, as quais seguem com mais de 23 milhões de ouvintes mensais no Spotify atualmente.
Sim, era um quarteto fabuloso, com o dom de criar excepcionalmente letras e melodias marcantes. Entretanto, a nova produção evidencia que não são apenas as músicas do grupo que podem gerar identificação no público, mas também suas características e relações mais íntimas. A simples troca de olhares durante o famoso concerto no terraço consegue refletir a cumplicidade que existia.
Para além da banda em si, fica claro o relacionamento de confiança e amizade que os integrantes têm com o restante da equipe. Por exemplo, George Martin, produtor musical da banda desde o início, tem sua opinião a todo momento requisitada e, mais do que isso, acatada. Não é de se impressionar, já que por seus arranjos musicais Martin foi considerado o ‘quinto Beatle’, mas é interessante ver a força de suas ponderações na tela. Já o empresário Mal Evans é um dos nomes mais acionados nos estúdios e, mais especificamente, ao longo do dia intenso de gravação e apresentação no rooftop do escritório da Apple Corps. A produção da Disney revela quase integralmente como foram os desdobramentos da última apresentação ao vivo da The Beatles.
Seis câmeras foram montadas no terraço. Outra, posicionada no prédio à frente. Três circulavam pela rua. E uma ficou estrategicamente escondida na recepção da Apple. O dia só não foi mais tipicamente londrino por não estar chovendo. Ao contar essa parte da história, multitelas foram utilizadas para mostrar eventos que aconteceram de maneira sincrônica.
O resultado da montagem é extremamente rico e cômico. O primeiro, por conseguir transmitir o impacto que o show teve por ter sido ao ar livre, captar a dinâmica espirituosa da The Beatles no palco e retratar o empenho do resto da equipe. O segundo, principalmente, por trazer à tona as diferentes reações de quem estava circulando na rua, entrecruzando com cenas do próprio show. Uma senhora chega a dizer que o som atrapalhou seu sono, constatação que arrancou altas risadas da plateia da cabine, formada em grande parte por fãs comprometidos e entusiasmados. No entanto, os personagens que destacam o humor nesse momento são os policiais que desejam encerrar o espetáculo, alegando “perturbação de paz”.
Após seu lançamento, “Let It Be” se tornou o disco e documentário que materializou a desintegração da banda. Na contramão, “The Beatles: Get Back” veio para comprovar que a sinergia musical e grupal era tão presente quanto qualquer conflito. São muitos os lados da confecção de um álbum de uma banda tão marcante. E Jackson, com seu talento e amor pelo tema, trabalhou para não deixar passar nenhum.
Nota: 10/10
Texto enviado por Mel Trench
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