A singularidade das narrativas peculiares do dramaturgo e romancista paraibano Ariano Suassuna, autor do clássico atemporal O Auto da Compadecida, é o que faz a trama de O Auto da Boa Mentira ter carisma o suficiente para envolver o espectador em cada um dos quatro contos apresentados, que tem como base frases e palestras contadas pelo próprio autor durante sua vida. Porém, todas as histórias possuem algo em comum: a temática da mentira. Através da união de grande elenco e um roteiro caprichado, a comédia acerta no humor dramático de cada personagem protagonista, mas caminha a passos lentos para um filme que necessita de agilidade para funcionar.
A trama e o elenco
Muito semelhante as comédias italianas dos anos 1970, que eram fragmentadas em um compilado de contos diferentes, e que hoje funcionaria muito bem sendo uma série de TV, as tramas presentes em O Auto da Boa Mentira – unidas pelas mentiras que contamos diariamente – aposta em personagens carismáticos e numa boa dose de drama para recriar o imaginário criativo de Suassuna, autor que sempre desempenhou em suas histórias as raízes brasileiras, o movimento barroco e uma forma espirituosa de falar sobre temas densos como religião, morte e solidão. Neste longa não é diferente, desde a trama protagonizada por Leandro Hassum (Tudo Bem no Natal Que Vem), que, aliás, faz um parâmetro sobre sua própria carreira, passando por uma história lúdica e doce sobre um menino que descobre ser filho de um palhaço de circo, todas as narrativas possuem acertos distintos, mas umas funcionam melhores que outras, especialmente no quesito crítica social, fator sempre presente nos contos do autor.
Hassum, como de costume, está excepcional na entrega emocional e no humor, assim como Renato Góes (Legalize Já – Amizade Nunca Morre), outro gigante nome do cinema jovem nacional. A história de um explora o lado pesado e negativo da fama e como o mundo é perverso com artistas, já a do outro, mostra a busca por se encaixar na sociedade e o tão presente abandono parental. Definitivamente, esses dois contos são os melhores e mais dinâmicos, já que os demais acabam se perdendo no arrastado desenvolvimento e culminam em desfechos onde a entrega é mínima para o investimento do espectador. As obras, ainda que mergulhadas no humor agridoce do autor, acabam pesando para o lado novelesco com o excesso de artificialidade de algumas situações, que soam contestáveis, sobrando apenas para drama humano e a relação dos personagens, o grande mérito da direção e do elenco.
A direção
A condução de José Eduardo Belmonte (Carcereiros: O Filme) é assertiva em deixar as histórias se desenvolverem sem pressa, algo que aprofunda ainda mais o sentimentalismo das situações, porém, o diretor pesa a mão na ausência de ritmo de alguns contos, na contramão de outros, como o que abre o filme, cuja história, interessantíssima, passa mais apressadamente. Apesar disso, seu olhar sensível compreende o tipo de humor necessário e investe em mesclá-lo com circunstâncias emocionais. Há bastante equilíbrio nos enredos e uma visível liberdade da direção em deixar o elenco confortável em improvisar quando há necessidade. A fotografia solar, por sua vez, remete ao mundo lúdico dos casos narrados e a trilha também cumpre seu dever em criar essa atmosfera poética e engenhosa do autor.
Conclusão
Com isso, O Auto da Boa Mentira é um verdadeiro exercício de amor à obra de Ariano Suassuna, feito com o olhar sensível de uma direção investida em homenageá-lo nessa série de contos lúdicos e preciosos sobre a mentira saudável em época de fake news. Um filme que deve agradar e aquecer o coração de quem já está familiarizado com as obras do autor, mas que, apesar do ar contemporâneo, peca em não dedicar parte de sua energia aos iniciantes nesse universo imaginativo de um dos nomes mais singulares da literatura brasileira. Ainda assim, é agradável aos olhos, doce e bem humorado, ou seja, tudo que estamos precisando nesses dias difíceis.