A sensibilidade do olhar de Chloé Zhao (Os Eternos) certamente nos faz compreender a razão de Nomadland – Sobreviver na América, sua nova obra, ser o grande favorito a levar a estatueta de Melhor Filme no Oscar 2021. Através de uma jornada poderosa e cativante, o drama mescla histórias e pessoas reais com ficção em uma narrativa documental sobre a vida de indivíduos que buscam encontrar seu lugar no mundo. Certamente, o longa é a mais pura essência do cinema contemplativo e, por conta disso, não deve agradar todos os públicos, especialmente os que buscam mais conflitos e ação, porém, faz tempo que algo artístico não impactava tanto nosso coração quanto este filme e dificilmente aqueles que prezarem pela imersão vão sair de mãos vazias.
A trama e o elenco
O enredo é simples e direto: mostrar a rotina solitária de uma mulher que mora em seu trailer e vive na estrada, pulando de emprego em emprego enquanto lida com seus temores internos e com o vazio do luto após a perda de seu marido. Porém, há uma verdadeira jornada de aprendizado que a protagonista enfrenta desde o momento em que decide deixar tudo que um dia viveu pra trás, até aceitar que se sente confortável em seu próprio caos. Nesse mundo nômade, ela se depara com pessoas em processo de cura, histórias de luta e amor e um Estados Unidos onde o almejado “sonho americano” não passa de apenas uma propaganda para os jovens sonhadores. Em certa idade na vida, empregos desaparecem, romances são raros e a estrada até o fim é só mais um caminho que precisamos atravessar sozinhos. Ou seja, dá pra notar que Nomadland é essencialmente poético, repleto de camadas reflexivas e estrelado por uma protagonista que possui um pedacinho de cada um de nós.
E por falar nela, Frances McDormand (Três Anúncios Para Um Crime), aos seus 63 anos, é uma potência inigualável no cinema atual. A veracidade de sua performance convence e funciona dentro desse contexto em que não-atores também contam suas narrativas e a trama brinca com o que é real e o que não é na cabeça do espectador. Há uma valorização dos momentos de silêncio que já é marca registrada do cinema singular de Zhao, mas que aqui atinge seu patamar mais profundo, e ninguém melhor que McDormand, super expressiva, para nos guiar por essa obra sensorial.
O casamento de Zhao e McDormand é perfeito e, com uma protagonista poderosíssima como essa, resta apenas o roteiro cavar bem fundo em seu íntimo e pôr para fora toda a sua vulnerabilidade. Fern é, assumidamente, uma nômade moderna, uma inquieta, e, apesar de ser o tempo todo confundida com sem-teto, ela não apenas se sente alegre quando está na estrada, como também é ali, em seu carro, que moram as últimas lembranças de uma vida plena que teve ao lado de seu marido. Não é uma casa convencional que a faz satisfeita, já que ela carrega sua zona de conforto dentro de si e o seu mundo – colapsado – se provou limitado demais para suportar uma alma que, no fim de sua vida, deseja correr livre por aí.
O roteiro e a direção
O roteiro, baseado no livro Nomadland: Surviving America in the Twenty-First Century, de Jessica Bruder, promove debates poderosos sobre como os EUA desampara a população acima de 50 anos. Esse descarte faz com que grande parte desses homens e mulheres idosos tenham uma vida sem conforto algum e sejam dependentes financeiramente de familiares. Além disso, é simbólico que o longa tenha direção de uma mulher de origem chinesa e imigrante, já que a trama é sobre como a idealizada “nação americana” não passa de um lugar hipócrita, que joga seus problemas para debaixo do tapete e evidencia as maravilhas do capitalismo, aliás, não muito diferente do Brasil atual e da falta de esperança que todos nós temos nos rumos que esse país tomou nos últimos dois anos. Não é mesmo?
De qualquer forma, o olhar externo de Chloé Zhao (Domando o Destino) e seu estilo único de narrar uma trama faz a obra ser absolutamente imersiva, receptiva e sensorial. De fato, uma diretora que ainda deve causar estrago no cinema nos próximos anos com sua coragem e ousadia de jogar na cara todo o lixo escondido no tapete. Uma das melhores realizadoras que surgiram nos últimos anos para, felizmente, renovar a falta de inspiração de Hollywood e dar fôlego ao “cinema de arte”.
Porém, a trama de Nomadland é desdobrada em seu próprio ritmo e, em alguns pontos, se repete demais, especialmente por se aproximar de uma narrativa documental que necessita dar evidência para alguns fatos, já que os verbalizar apenas pode acabar por não fixar na cabeça do espectador certos pontos importantes. É preciso assistir com paciência, tempo livre e uma boa caneca de café do lado. Apesar dessa lentidão, a trama envolve e mergulha em cenários belíssimos, fotografados com estilo e que são ainda mais cativantes de serem assistidos em uma tela no formato IMAX. A câmera de Zhao flutua pelas cenas com leveza e alcança momentos tão íntimos, que quase esquecemos que se trata de um filme roteirizado. O uso de luz natural, somado a excelente trilha sonora instrumental, que cresce nas cenas mais emotivas, torna a experiência inundada de melancolia.
Conclusão
Apesar da lentidão de sua narrativa, Nomadland é uma experiência de imersão que nos instiga a refletir sobre liberdade e solidão através de um poderoso estudo de personagens que busca expor a falência do sonho americano e celebra aqueles indivíduos que não pertencem à lugar algum. Um drama lindamente filmado, único em sua essência, que pode ajudá-lo a valorizar mais sua própria vida. E se ainda não está convencido de que essa obra é potente, Frances McDormand está magnífica e o Oscar de Melhor Filme vem por ai para estabelecer, de uma vez por todas, que esse é o grande filme do ano.